Citemor 2000



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two banks of four

concerto






Seg 14 Ago | 22:30 | Castelo

festa de encerramento

OS ANOS MADUROS

HÁ COISAS que apenas se fazem mais tarde na vida. Por exemplo, gravar um disco como City Watching. Não foi por acaso que Miles Davis apenas partiu para a aventura abstraccionista de Kind of Blue quando o compêndio do modernismo jazz já não lhe escondia qualquer segredo, que o espírito de John Coltrane apenas se ergueu para abraçar A Love Supreme depois de dez anos de navegação nos mares revoltos do «hard bop» e que Marvin Gaye apenas assumiu a solidão do homem na cidade moderna de What's Going On depois de meia vida ao serviço da fábrica de ilusões colectivas da Tamla Motown. E não é por acaso, agora, que só uma eternidade depois dos primeiros passos na aprendizagem dos rudimentos da música que fala ao corpo e ao espírito Rob Gallagher (outrora Galliano) e Dill Harris (veterano dos Young Disciples mais conhecido como Demus) sintam capacidade para erguer o olhar acima da cidade (não deixa de ser sintomático que a faixa de abertura se intitule «Skylines Over Rooftops») e, com um único gesto, tocar o Céu e a Terra, a música e a vida. Valeria a pena, sem dúvida, procurar decifrar a sumptuosa linguagem arquitectada por Gallagher e Harris no ponto de intersecção das memórias do jazz místico, do psicadelismo, do pós «acid jazz» e da música orquestral para o cinema. E, até, inventariar os passes de magia (para não dizer alquimia) onde City Watching recolhe o seu esplendor estético. Não deixar de salientar, por exemplo, como, de repente, mal o disco começa, uma nova forma de pensar, desenhar e respirar a canção parece nascer espontaneamente do nada em «Skylines Over Rooftops». Como compreender o ritmo do tempo e do espaço volta a ser a chave da música maior que a vida em «Time Flies».Como orquestrar o caos da multidão se apresenta - 30 anos depois do colapso do «free jazz» - como uma utopia ao alcance da música pop em «Erols Cafe». Como escrita e improvisação são as duas faces da mesma realidade em «Routemaster». Como passado e presente parecem reunir-se pela última vez para celebrar a chegada iminente do futuro em «Last Dance».  Como o saxofone pode ser - como acontecia em Coltrane - a transfiguração final da voz que percorre o caminho da redenção espiritual em «Street Lullaby». Como o clássico «Afro Blue» (do mesmo Coltrane) avança um pouco mais na sua viagem rumo ao infinito na voz de Valerie Etienne. Ou como «Hook & a Line» é a canção que ainda faltava esculpir nos limites da sabedoria soul-jazz. E, no entanto, o essencial ficaria por dizer. Que, para gravar um disco como City Watching, nada pode ser mais importante que o tempo. Não o tempo de estúdio reservado para a sua concretização mas o tempo necessário para que a vida assente, para que a certeza do que se procura comece a iluminar o olhar e para que a serenidade desça sobre o espírito. E, sobretudo, porque de música se trata, o tempo necessário para se compreender por que razão o silêncio era de ouro para Duke Ellington e Brian Wilson, Miles Davis inventou em surdina os melhores tons de azul, Curtis Mayfield não precisou de levantar a voz para fazer passar o desencanto de There's No Place Like America Today, Marvin Gaye chorou a cidade enquanto celebrava a música em «Inner City Blues» e a raiva de Archie Shepp se dissolveu nas melodias luxuriantes de Attica Blues. Então, e só então, poderá nascer um disco como City Watching. Uma obra-prima absoluta. 

Ricardo Saló, Expresso, 8 de Janeiro de 2000

(crítica ao album “City Watching” dos Two Banks Of Four)


Reflectindo de forma extraordinariamente expressiva e intensa a vivência que o quotidiano de Londres incute em Rob Gallagher (ex-Galliano) e Dill Harris (produtor do clássico álbum “Road To Freedoom” dos Young Disciples), “City Watching” é um  grande trabalho de reconstrução do jazz, tal como poucos demonstraram capacidade de produzir. Sem qualquer pudor estes dois produtores demonstram, através de composições musicais de elevadíssimo nível, os universos que os influenciam. Desde o exotismo oriental (“Erols café”) que por comparação transpira em algumas obras cinematográficas consagradas, passando por um barroquismo que assenta no cravo como elemento unificador (“Theme de la tete”) e em doces orquestrações clássicas (“Street lullaby pt.I), até às composições mais complexas delineadas a partir de sensações edificadas de acordo com as orientações transmitidas pelo funk, soul e hip-hop (“Perilous ways”, “Hook & a line”, “Spedy´s auto repair” ou “Routemaster”), tudo se pode identificar. E isto sem nunca esquecer o jazz, que actua como elemento de comunhão entre as partes, reproduzindo-se na sua essência e possibilitando uma totalidade muito coerente e interessante.

Seria uma tremenda injustiça não referir as excelentes colaborações com que Gallagher e Harris contaram na criação desta banda sonora urbana de canções com emoção, pois são elas que a completam, mas sem nunca os seus principais autores deixarem de demonstrar a “sua” visão, funcionando sempre como eficientes maestros de um todo. As vozes de Paul J. Fredericks, Jean e Doug Caramouce, Valerie Etienne, Marsha White, Red Egypcians, assim como a declamação inspirada de I-G Culture (“Perilous ways”) e Kate St. John, juntam-se de forma soberba à genialidade dos arranjos clássicos de Ski Oakenful, ao trabalho “sujo” de construção de Tony Vegas (elemento dos curiosos djs/produtores Scratch Perverts) e à competência imaculada dos diversos músicos que tocaram em todo o disco.

Embora já gravado desde meados de 1998 só em 2000 conhece edição por questões de preferência dos seus autores, que se prendem com a enorme coerência conjuntural que as suas ideias conseguem agora encontrar. No entanto, esta obra não perdeu nenhum do seu charme ou da sua poesia, tal a beleza das canções que a compõem. O resultado da fusão entre visões pessoais da cinzenta realidade londrina e o jazz resultaram da melhor maneira possível, na exploração de caminhos inovadores para a evolução da música de cariz negra, num contexto europeu, e no evitar de clichés tão em voga nos dias que correm, maioritariamente culpados das repetições pouco interessantes que somos muitas vezes obrigados a consumir.

De tudo isto importa reter uma ideia: os Two Banks Of Four arriscam-se a ter elaborado um disco que permanecerá como um dos grandes deste ano. E ainda estamos no início. (8/10)

Pedro Dias da Silva, Blitz, 2000

(crítica ao álbum “City Watching” dos Two Banks Of Four)


Piano Ski Oakenful 

Teclas, misturas e voz Rob Gallagher

Teclas e misturas Dill Harris

Baixo Andy Hammil 

Bateria Daniel Crosby

Vozes Valerie Etienne, Paul Jason Fredricks, Julie 


Bilhetes à venda nas lojas Valentim de Carvalho

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Two Banks Of Four – City Watching

CD Sirkus / MVM 2000