Live Art Writers Network é um projeto da plataforma digital performingborders, dedicado a cultivar práticas de escrita crítica e de reflexão que acontecem em diálogo com a performance e live art, e que se entrelaçam com um pensamento crítico transnacional sobre processos criativos, publicação digital e ação política.
O projeto volta este ano ao Citemor, convidando os artistas Ed Freitas e Letícia Maia a acompanharem o festival e responderem, nas suas linguagens artísticas, aos processos criativos, discursos e apresentações englobadas no festival. A artista e académica Diana Damian Martin (Reino Unido/Roménia) acompanha Letícia e Ed com o desenvolvimento de pensamento crítico e teórico em torno de temporalidades queer e crítica anti-conformista.
por Letícia Maia
© SUSANA PAIVA
Sapatão, maria-homem, maria-macho, lésbica, sáfica, fufa, frígida, fancha, butch/femme, sapa, mona, bofinho, caminhoneira, marimacho, lenhadora, frissureira, dyke… Essa é apenas uma pequena lista dos inúmeros termos historicamente utilizados como insultos contra mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres. Embora carreguem marcas de violência simbólica, essas palavras também revelam a complexidade e a pluralidade das existências e desejos que escapam às normas heterossexuais. É desse campo tensionado — onde a apropriação da ofensa pode ser resignificada como afirmação e resistência — que a artista Sónia Baptista parece partir em Dykes on Ice.
Movida pelo desejo de compartilhar uma perspectiva atravessada por sua vivência lésbica-sáfica, a artista, ao lado de seus parceiros de cena Joana Levi (cocriadora) e Bruno Soares Nogueira (artista convidado), nos convida a adentrar uma experiência que entrelaça sua trajetória pessoal a uma reflexão crítica das práticas normativas. A partir de seu lugar enquanto mulher lésbica — cis, branca e europeia — propõe uma cartografia de representações que moldam o imaginário coletivo sobre as lésbicas, articulando dados históricos, ficções e fabulações que evidenciam as tensões impostas pela heteronormatividade.
É importante destacar que esta narrativa parte de um ponto de vista situado, atravessado por marcadores sociais específicos — para que não caiamos no erro de universalizar experiências ou de tomá-las como representativas de toda a comunidade cuír, nem de vincular tais práticas exclusivamente a corpos cis.
Dykes on Ice estrutura-se em torno da bem-humorada ideia de “lésbicas no gelo”, onde o gelo opera como metáfora para a frigidez e o medo. O uso de estratégias de espetacularização — cortinas, músicas, luzes — nos coloca rapidamente num exercício de imaginação, ou de “invaginação”, convocando-nos a quebrar o gelo. A dramaturgia articula referências musicais, audiovisuais, teóricas e populares, compondo um repertório que opera tanto pela acumulação quanto pela fricção entre elementos.
Mobilizando imagens, materiais, práticas e discursos que constroem o imaginário estereotipado das experiências sáficas, Sónia desmonta e ironiza essas narrativas, denunciando condutas e discursos que perpetuam preconceitos e violências — simbólicas, psicológicas e físicas — sustentadas por uma cultura machista e heteropatriarcal.
Logo no início do espetáculo, a artista reivindica o direito das lésbicas de falarem por si e de construírem suas próprias imagens e narrativas. Ao citar Paul B. Preciado, Sónia aponta para a coincidência entre as representações da ciência médica e da pornografia, revelando como as imagens produzidas sobre lésbicas foram historicamente expropriadas por um olhar masculino e hegemônico. Trata-se do conhecido male gaze, que ainda alimenta tanto a invisibilidade quanto a construção de estereótipos e narrativas trágicas nas quais personagens lésbicas frequentemente terminam mortas ou condenadas à infelicidade. Pensar essas representações como tecnologias de gênero é reconhecer seu papel na conformação das sexualidades e construção de nosso imaginário.
Dykes on Ice se posiciona contra essas formas de invisibilização e violência, expondo como as imposições de gênero e sexualidade ainda atravessam de modo naturalizado e violento as experiências dissidentes. O espetáculo recorre a recursos didáticos e a um humor ácido para questionar normas e crenças estabelecidas, sobretudo no campo da sexualidade regulada pela heteronormatividade compulsória. Sua desmontagem mira diretamente os estereótipos que moldam imaginários sobre quem são, como vivem e como se comportam as mulheres lésbicas.
O trabalho denuncia agressões e violências, mas também aponta caminhos de resistência. Não apenas expõe o medo e as feridas que nos afetam pessoal e politicamente, mas colabora para a ampliação de imaginários, convidando-nos a olhar para nossas feridas e fantasias, para fabular modos de resistir ao silenciamento e ao medo que ainda hoje congelam nossas entranhas. Assim, contribui para a criação de espaços onde seja possível afirmar a alegria e o desejo de mulheres que amam mulheres — ou de corpos que buscam construir e desconstruir seus modos dissidentes de amar, sem serem interrompidos pela violência.
Após assistir ao espetáculo, surgiram algumas questões que gostaria de deixar aqui como provocação reflexiva. Há um momento particularmente desconcertante quando somos lembrados de que as chamadas “terapias de reconversão”, incluindo práticas de “violação corretiva”, só foram proibidas legalmente em Portugal em 2023. Na sequência, essa violência é ridicularizada, provocando riso. Mas me pergunto se, enquanto rimos, percebemos a perversidade dessas violências ou se o riso tem um efeito de apaziguamento que buscamos para expiar nossa culpa e a nossa necessidade de agir.
Me parece haver um risco nesse riso, especialmente quando ele não vem acompanhado de desconforto. Acredito que o humor e a ironia podem operar como potentes ferramentas críticas, para inverter e deslocar relações dadas como norma. E me questiono onde se situa o ponto de desorientação, a torção cuír, que nos tira do eixo após rirmos de uma cena que encena, de modo cômico, violências reais.
O espetáculo parece ficar, em certos momentos, no limiar desse deslocamento. Contudo, o ritmo e a sobreposição de informações — por vezes num tom didático, próximo ao de uma palestra-performance — frequentemente parecem nos devolver o alívio cômico e intelectual antes que o constrangimento se instale plenamente. Nós, público engajado, ativista e/ou acadêmico, compartilhamos uma certa satisfação intelectual a cada ironia, citação ou dado histórico, o que talvez apazigue nosso desejo de ação porque também não queremos permanecer muito tempo no desconforto.
Compreendo que cuírizar as políticas do corpo nos compromete a refletir criticamente sobre os modos de produzir e pensar trabalhos artísticos, reconhecendo que esses podem colaborar tanto para a manutenção quanto para a desconstrução de imaginários. Este texto, escrito por uma artista também interessada em questionar esses processos normativos, não pretende ser uma crítica nos moldes tradicionais, mas pensar com o trabalho, afetada e seduzida por ele. Reconhecendo sua força política e poética e o mérito de Sónia Baptista, uma das mais relevantes artistas da dança/teatro em Portugal, em fazer circular essas questões nos grandes teatros — espaços onde públicos confortáveis em seus assentos normativos podem ser chacoalhados, seja pelo riso ou pelo desconforto diante de realidades que transcendem as suas.
Afinal, quantos espetáculos sobre e a partir de vivências lésbicas, produzidos por mulheres que se afirmam publicamente lésbicas ou bissexuais, temos assistido nos grandes palcos portugueses nos últimos anos?
Adoto a grafia "cuír" em vez de "queer" como gesto político e epistemológico de deslocamento do termo de suas origens anglófonas e acadêmicas hegemônicas, situando-o nas tensões, afetos e práticas dissidentes do contexto latino-americano. "Cuír" opera como tradução inventiva e desobediente, enfatizando a sonoridade das línguas ibero-americanas e recusando as normatividades que "queer" adquiriu em certos circuitos institucionalizados do Norte Global.
21/7/2025
Texto: Letícia Maia
Fotografia: Susana Paiva
2# GAY-ME: uma proposição crítica performativa em forma de jogo
por Ed Freitas
Domingo, 12:48, Residência Vivenda Adélia Caiado
1. As regras do GAY-ME
Começo pelas mãos. As mãos que tocam, que bordam, que costuram e que depois escrevem — escrevem como quem traça caminhos sobre tecidos. Mãos que confundem-se com fios e com os veios daquilo que já vi, vivi, toquei, sonhei. É com elas que reflito — não no silêncio do pensamento abstrato, mas no atrito da matéria.
As palavras que não foram ditas — as que ficaram suspensas — pesam agora sobre os dedos. E são lançadas como dados: dados desviados, tendenciosos, enviesados. Dados performáticos. Dados que são também voz, tecido, texto e corpo.
Lanço o dado do jogo e do gesto. E logo já não sei onde termina o jogo e começa o gesto. A crítica, aqui, é escrita tênue entre escutar e costurar. É menos uma análise do que um processo de artesania sensível, onde cada palavra está carregada de vibração, escuta, subjetividade e atravessamento.
Neste jogo — apresentado entre performingborders e o festival Citemor 2025 — invento outra crítica: não uma que julga ou enquadra, mas uma que se borda junto da obra, dos afetos e dos corpos que a vivem.
Trata-se de criar dados têxteis, bordados, sensoriais, que não decidem o acaso, mas revelam intersecções: sujeitos, verbos, signos, afetos — forças que me atravessam como artista, como nordestino, como filho do sertão e da mãe solo, como pesquisador de um outro modo de dizer, de lembrar, de agir.
2. O que eu vi: o contexto e o contágio das obras
Sónia Baptista – Dykes On Ice
Um solo que se quer plural. Um corpo que se desmonta em teatralidade e se reconstrói em amor, desejo, política. A palavra "grelos" como sinal e sintoma: erotismo e política? ironia e raiva? Em 2010 ou 2025, seguimos atravessando desertos — e desertos também são lugares de presença.
Paz Rojo – Hipersueño
Delírio como forma de recusar o mundo. Uma cena que implodiu o tempo e escancarou o incômodo. O espaço da artista é ruína fértil — lugar onde o corpo se sustenta na instabilidade. O som me atravessou e algo em mim — proteína, talvez? — despertou e gemeu.
3. Os objetos do jogo: dados para ver, escrever e dançar crítica
Dado 1: Dykes On Ice
Seis lados: três cor vinho, crochetados com palavras — Solo, Corpo, Ice. Três brancos: Amor, Grelos, 2010.
Um dado que gira no mistério de dizer e de ler, entre memória e temperatura, entre erotismo e resistência. O solo é palco, é grito, é arquivo. O corpo transita: entre símbolo e suor.
Dado 2: Hipersueño
Seis lados cinzentos com letras: A, T, C, G — nucleotídeos, códigos genéticos. Dois retângulos bordados com Base e Núcleo.
Este dado não apenas gira: ele se recompõe. Ele reescreve. É um novo código genético da crítica, da minha crítica, do meu hiper-sonho — onde a biologia também pode doer.
4. Vamos jogar
Possibilidade A: role um dado por vez
Possibilidade B: role os dois ao mesmo tempo
Instruções:
U. Feche os olhos.
V. Escolha um dado.
W. Role-o.
Y. Leia a palavra que caiu.
X. Com essa palavra, escreva uma pergunta para o mundo.
Z. Pergunte sem medo.
Este jogo não se encerra com respostas — ele se alonga em perguntas.
Continue perguntando. Continue escrevendo.
Cada resposta será outra dobra. Cada dobra, um fragmento de crítica.
P.S.: SE QUISER, EXTERNALIZE UM GESTO!
Dance. Borde. Escreva. Pinte. Cante. Grite.
Cada participante faz sua ligação. Cada partilha gera texto.
As intersecções são o texto.
O texto é um mapa.
5. Arabesco final: performar pensamento como gesto
Coimbra, 20 de julho de 2025. Sol em Leão.
Bordo o tempo com os olhos de Agamben, a desobediência sáfica de Sónia, a ruína intencional de Paz.
Cada palavra que escrevo é também parte da minha dança — um convite ao (de)lírio como forma de pensamento.
"Se o mundo é passado": Paz, escrevemos para fazê-lo presente.
"Se a arte é ruína": bordamos ruínas com fios de inquietação e afeto.
"Se a experiência se paga": pagamos com o corpo, com o cansaço, com a vibração.
"Se o corpo desdobra": escrevemos para o corpo dobrado, para o corpo partilhado.
Escrever, para mim, é performar o que ainda não sei.
É transformar agulha e fio em perguntas.
É des-virar. É torcer.
É criar crítica como quem dança pontos de crochê no abismo da linguagem.
Neste arabesco crítico e sensível, cabem Sónia, Paz, o Sol em Leão (que já já será Virgem), os grelos não ditos, a adenina da resistência, o gelo do solo, o amor não nomeado, mas sempre entrelaçado.
Lanço os dados.
Eles decidem.
Eles convidam.
A jogar.
A perguntar.
A viver.
*
Anexo desviado
Players do GAY-ME:
Nilo Gallego (Orquestina de Pigmeos)
¿A que hora voy a dormir hoy?
Ice - Adenina - Ice - Citosina - Ice - Adenina - Guanina - Grelos - Adenina - Grelos
Chus Domínguez (Orquestina de Pigmeos)
¿Por qué jugar?
Solo - Timina - 2010 - Guanina - 2010 - Adenina - Adenina - Solo - Adenina - 2010
22/7/2025
Texto: Ed Freitas
Fotografia e vídeo: Ed Freitas
#3 Sinais e sussurros para um realismo mágico praticado, efeitofeitiço em Hipersueño de Paz Rojo
por Letícia Maia
estou sentada de olhos fechados sob-sobre uma superfície em ruínas. lisíssima. higienizada. é assim que ela se parece. não a vejo, mas a sinto — como tudo que me cerca.
meu corpo vibra em resposta a toques que vêm do invisível. luz, som, outros corpos, olhares, presenças que tocam minha carne, e para as quais ainda não foram inventadas palavras.
situo-me entre o sono e a vigília, um estado de dormência que depois se converte em canal de vibração. devir. manifestação. passagem para germens de mundos em nascença.
mas agora, estou sentada sob-sobre a ruína lisa. uma luz azul-rosada — ou violeta — cobre parte do espaço até a zona do fundo escuro. tudo aqui ressoa: som, passos, gestos, respiração, batimentos, ruído. dentro-fora-espaço-tempo sem divisão de planos.
sinto a presença de outro corpo que agora me toca. meu coração acelera e toda a minha pele se arrepia. mas não reajo. permaneço nesse estado de latência, enquanto sou conduzida por profecias de mundos vindouros. entre mover, ser atraída e movida por forças invisíveis, indizíveis — abrimos espaço para um animismo sensorial em contato com desconhecido.
habitamos esses entretempos-espaços interpolados — antes, agora, depois, aqui, lá. percebo quão pequeña soy e me abro à relacionalidade radical que me chama. gesto radial. raios que partem de múltiplos centros estelares e se irradiam por meus órgãos. mírame, no estoy dormida. estoy en un estado de hipersueño entre espacios y tiempos. aunque estoy aquí, también estoy allá.
posicionadas em vórtices espaço-temporais, ouvimos sussurros que emergem do mistério. convocam-nos a ver o escuro que as luzes da modernidade-colonial-capitalista insistem em ofuscar. prática de evocação e invocação que posiciona o corpo como espaço poroso, canal para forças que se aproximam em forma de sinais e sussurros — um exercício de miração fabular que nos convida a coabitar mundos outros. abrindo nosso imaginário mágico-sensível.
em fragmentos descontínuos, nossos sonhos, desejos e delírios rondam e pousam sob-sobre as ruínas como moscas varejeiras cintilantes. anunciam o fim em decomposição e o começo germinado por larvas que brotam da matéria em ruína. enquanto buscamos beleza-borboletas ou o romantismo das abelhas polinizadoras, são as moscas — essas corporalidades sujas, mundanas, abjetas ao nosso olhar — que espalham seus ovos invisíveis. proliferam sobre, ao lado, sob nossos corpos. não as vemos — mas estão por toda parte em brotação.
estoy sob-sobre las ruinas y me muevo a través de diferentes planos. sí, sí, sí — transito entre dormência e condução. há reciprocidade em tudo que vibra. luz, escuro, som, movimento. os líquidos do meu corpo se movem em uma (des)sincronia viva, em ressonância com o enigma. turbulência no contato corpo-a-corpo. o toque súbito, intenso, entre intimidade e brutalidade, enuncia a presença de forças que nos mobilizam.
nosotras transitamos entre esses estados: dormência e vigília, sonho e hipersueño. conduzir e ser conduzida. movemo-nos entre planos espaço-temporais. encaixar, tocar, empurrar, alisar, apertar, bater, torcer, girar, arrastar, suspender, convocar — otros cuerpos en latencia. hay muchas como nosotras, las evocamos desde el misterio.
mis ojos se cierran una vez más. dejo me llevar por una extraña turbulencia que desorienta mis sentidos. nuestros cuerpos son una antena, un canal para fuerzas invisibles que insisten en manifestarse en una fenomenologia somatosensorial.
torpor cotidiano interrompido pelo contato com o outro, com o porvir, com o que já foi — desejo, delírio, alucinação. confabular portais. abrir campos para forças-guia. pernas bambas. aquelas que dançam se deslocam por tempos descontínuos, espaços limiares, antes e depois, entre fins e começos de mundos.
em outras camadas, nos movemos juntas por essa cosmogonia inventada entre escombro e brotação. sintonização. manifestação. proliferação. ecolalia. grito estrondoso que toca o intocável. enquanto o escuro nos engole, o som vibra e chacoalha as ruínas onde assentamos nossos corpos, ideias e fabulações.
meus olhos se abrem devagar. dançar o desconhecido. exercício de transição entre elos temporais fragmentados. pistas. indícios. canais. confluência entre o que foi, o que é e o que se imagina.
persistência da paisagem fabular. (des)aparecer. olhos. ossos. órgãos. carne. pele. matéria. entrelaçamento. interdependência. enredamento. evocação. captar a textura sensível-sensual de uma percepção mais que humana.
no hay lugar de origen al que regresar. ningún futuro delineado. con-fabulemos juntas. movámonos en el misterio, entre tiempos y espacios, muerte y vida, un estado umbral de presencia, ni principio ni fin, o mejor: principio y fin, punto de transición, cosmología liminal.
algo grita em nós. futurar. sonhar. imaginar alucinadamente. efeitofeitiço de contaminação. enredamento. enunciação. ouçamos as outras — as que virão do reencantamento. enigma de outros mundos, prontas a lamber o invisível. de nós: resíduo, vestígio, iminência. enlace entre sonho e despertar. ficção e realidade. sinais e sussurros para um realismo mágico praticado.
epílogo
Este texto parte de um exercício de escrita automática, realizado durante e após a apresentação. Os desenhos que o acompanham foram feitos no escuro, durante o espetáculo, em resposta direta aos efeitos performativos de desorientação que este produziu em meu corpo. O texto busca refletir, por meio de um fluxo de pensamento espiralado e descontínuo, uma cartografia sensível que foge da lógica cartesiana, abraçando a imprevisibilidade e a corporificação como exercício de pensamento crítico.
Hipersueño integra a série de investigações Morir Bien, da artista espanhola Paz Rojo, e conta com a participação de Arantxa Martínez e criação sonora de Luz Prado. O trabalho foi apresentado no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, no contexto do festival Citemor 2025.
25/07/2025
Texto e fotografias: Letícia Maia
#4 (((Essa carta-rio que se espalha como artista que empurra margens)))
por Ed Freitas
Texto Que Se Canta, ou para ser lido em voz alta
“...Sofri o grave frio dos medos, adoeci.
Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento?
Sou o que não foi, o que vai ficar calado.
Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.
Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem…” -
João Guimarães Rosa [JGR], A Terceira Margem do Rio, 1962
(((Fiu, Fiu, Fiu, Fiu… Fiu, Fiu, Fiu………………………….Canta-Ó, Rio: Fiu, Fiu, Fiu…….)))
Uma resposta performativa à “La excitación del paisaje: río” do artista Óscar Bueno, realizada no Citemor, em Montemor-o-Velho, Julho de 2025
Óscar,
Tive que parar.
Não por educação, nem por respeito, foi o caso do meu corpo que não conseguiu seguir como estava…
(((“A gente teve que se acostumar com aquilo. Às penas que, com aquilo, a gente não se acostumou, em si, na verdade”, JGR, 1962)))
Diante da paisagem que você convocou, levado eu fui contigo, suspendi os hábitos do olhar.
Parei, como quem consente ser movido.
Parei, como quem aceita o estar à deriva.
Havia ali, diante de mim, uma monumentalidade silenciosa:
a paisagem à beira do Mondego;
recortada pelo teu gesto: l_e_n_t_o; s_e_n_s_í_v_e_l; e_s_t_e_n_d_i_d_o nos tempos.
Essa paisagem não era natural.
Digo estética, multisensorial, construída no plano da escuta e da excitação.
Era uma coreografia de presença,
onde o som [_____] e o corpo [_____] atra_vessa_vam [_____] e dançavam às m\ ar /gens.
(((Vez, Versavam Verso, Versavam Avesso, Fúúúúúúúúúúú, Frúúúúúúú, Fhruuuu, Vez)))
Uma (c)obra expandida, assim feita de camadas que, ora se tocaram, ora se diluíram:
— o teu corpo junto ao rio, ora movimento, ora eternidade;
— o espelho na água, que me devolveu, a mim mesmo, em Narciso desarmado;
— o barco que atravessa e encena a tua margem;
— o barqueiro que é tu, conduzindo-nos sem pressa;
— o livreto com imagens de palavras, sonhos dispersos, que ora narra, ora abandona;
— os sons que te habitavam, mas também vinham da natureza e da cidade, e que, fundidos, intrusivos, ampliavam a espessura do visível.
Cada pessoa com seus escutadores, laborando.
Cada escuta, uma oferta de decisão.
Cada margem, um acontecimento diferente.
E ainda assim, o milagre do partilhado.
(((Mesmo com os olhos, vejo os olhos que mareja, é um passarinho delicadinho que a estar a plainar, momento mesmo tanto, aqui, passarinhorinho pequeninhoninho, suas guelras guerras anacrônicas aladas, tingidas dinossáuricas de impossível que, lá no transe da minha trama em terra que me dê chão, trama de sonho pesado no meu tear, assim, linha por linha, escrevo fio por fio, uma paisagem Tessalônica, arcaica, tramada em feitos épicos invisíveis nos grânulos pictóricos, é passagem paisagem con-fiada, de muitos muitos muitos muitos tensos fios dos homens em suas lutas, está tudo bem ali, junto-ruína com rio, junto-rindo, rio arruinado rindo, bem ali, vê ou não vê? Carne tessitura com o mundo, vem cá, Sem-Nome, vem cá, pousa em mim)))
Ali, compreendi: a paisagem que você sustenta não se contempla. Ela se habita!
Acionei a máquina de datilografar.
# Ontem um rio moveu-se em mim
pantanoso evocou seus deuses
Antes de ontem era noite
sombras orquestraram sons
pirilampos dançaram com peixes
e as estrelas: independentes do céu #
(((Corte de paisagem no espelho, leio que a chuva está chegando, são imagens recortadas na teia que faço de lã, o outro lado, do Rio, do Atlântico, do mundo, convocar imagem em fio, tecer em mim uma poesia, meu corpo em vocação fiadora, Carta-Rio que desliza, contaminar-se)))
Não há uma posição segura para ver a paisagem, há que estar im-plicado, muitas e muitas plicas, como quem submerge e não apenas ad-entra, ad-voga na água.
Excitação, então, não como agitação, mas, estado de sensibilidade acesa.
Excitação, explosão? Estado de sensibilidade incandescente.
(entre o espelho e o barco,
é o que corpo vira margem.
e a margem, escuta.)
Depois daqueles dias, me recolhi.
gri-i-i-i-i-i-i-i í í í — gririririri-ririrí
“Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
Ninguém é doido. Ou, então, todos.
Só fiz, que fui lá. [_______________] Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. [_________________________________cá estou, do outro lado, esperando, na paisagem, esperando_________
________________________________] Ao por fim, ele apareceu [_________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________há
muito
espero____________________________________( )_________________________muito_____________________(
gri-i-i-i-i-i-i-i í í í — gririririri-ririrí
)__________________________________________________________________________muito_______________________________________, aí e lá…” (JGR, 1962)
Voltei para a casa flutuante em residência flutuante, casa extensão da paisagem, e depois, ao meu atelier de paisagens, vi algo se gestando,
manifestando, devagar,
esse algo, entre palavra e nó,
entre imagem e trama.
Foi quando comecei, o te-cer, a te fazer ser.
Usei lã de ovelha bordaleira, que é nos meus sonhos a lã que recolhi da tua terra, uma folha de papel fotográfico, fatiado-fiado, para tramar o desejo, um galho que apanhei no percurso e que su-porta as imagens que extraí do teu corpo em ação, e o espaço, Óscar.
(((Um corvo parece rosnar, piar-ar, guizar-ar, insiste-ar!)))
Mas nada foi uma tentativa de arquivo.
Foi tradução. Expansão. Excitação. - ar
(((Foi o corvo quem trouxe em amigo tessitural, tessiturânico, mistérico: seu barulho sacode chocalhos, insistem insistem, ambos)))
Minha resposta ergueu-se como objeto visual, um manto, uma superfície que se move.
E depois virou escritura, literaterra, ou talvez haja sido sempre, as duas coisas; as duas margens:
a trama do têxtil como escrita performativa,
você e eu,
as nossas sombras,
A escrita como matéria visual.
A lã veio para dar consistência à memória do solo.
A folha, como gesto de decomposição da imagem.
Como se dissessem: nada aqui está para fixar. Tudo escorre, shhhhhhhh, shhhhhhhhhi, shhhhhhhuuuuuuuá...
Como a água... Como o tempo… Como teu trabalho.
Camuflar e Contemplar, dois verbos que atravessaram a tua primeira paisagem.
Dois verbos cujos modos de ações sugeridos tornaram bússolas para mim:
Camuflar-se não é desaparecer, mas reorganizar o visível.
( ________)
Contemplar não é parar, é afinar a escuta.
_____(_ __)
Meu trabalho têxtil não ilustra o teu.
Ele te responde.
A trama deita sobre tua paisagem, e interroga:
o que de mim também é rio?
o que de mim também se move?
o que de mim precisa decompor-se para seguir vivo?
(((Escuto Caetano Veloso, em A Terceira Margem, 1991)))
(e o que escapa da imagem,
a lã tenta conter;
e o que escorre do som,
a escrita tenta amparar.
desculpa, às vezes não consigo)
Penso no tempo em que estivemos juntos: tu, a paisagem, nós o público.
Na lentidão que não era demora, mas política.
Na escolha de estar-junto sem querer controlar o rio.
Na forma como teus gestos desorganizaram o que eu esperava.
Ali, fui obrigado a atualizar o meu olhar.
A lembrar que nem toda crítica nasce de juízo.
Às vezes, pensar nasce de escutar.
Naquele instante, lembrei de Diana Damian Martin, não como referência, mas como dobra.
Em uma conversa recente, dizia que há falas que não querem traduzir o mundo,
mas torcê-lo, reescrevê-lo em outro ritmo.
Falas que nascem do desvio, do quase, do entre.
Tecer espaços, volumes com espaços, palavras e espaços.
(((o corvo-corpo me bicou, ferido, estou em grunhidos na paisagem)))
A tua paisagem me ensinou isso:
a possibilidade de existir entre margens,
de fazer da arte um espaço de deslocamento sensível.
Ali, a crítica não veio da análise.
Veio do corpo que se deixou afetar.
Do artista que escreve com fio.
Do espectador que responde com gesto.
(((o rio ensina que nada se mantém fixo.
o artista, que tudo pode ser forma de escuta.
e a paisagem, onde habitar é também compor)))
Óscar,
Esta carta é minha travessia.
Não te escrevo para explicar o trabalho.
Escrevo para te dizer o que fizeste comigo.
Tua obra é mais um deus fundido em mim…………………….
“E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos!” (JGR, 1962)
…………É longo mantra, para ser ativado exige seu tempo em meditação total.
E me toca,
não pelo excesso, mas pela contenção.
Pela forma de convocar presença sem gritar.
Pelo modo como, tuas paisagens, feito escapas:
desprendem corpo, som, lentidão e implicação.
Teu trabalho me ajuda: a lembrar que arte, no meu real, é uma forma de viver.
Obrigado por mover minhas margens.
Segue fluido.
Ed Freitas
::NOTA::
Esta carta é parte de uma resposta performativa ao espetáculo “La excitación del paisaje: río”, apresentado por Óscar Bueno, no festival Citemor 2025. O texto foi escrito como imagem, enquanto uma resposta visual: um manto de lã e papel fotográfico que tece imagens do espetáculo em decomposição, camuflagem e reconexão. Entre a carta-tecida e o objeto-tecido, proponho uma leitura em deslocamento físico ocular, que não busca tradução direta, mas atravessamentos sensíveis de um texto-têxtil, indo e vindo, alinhavando superfícies relacionais. Não há separação entre materialidades, uma vez que as linguagens oferecem imersões tessiturais nascidas pela comunhão na paisagem. Como propôs Damian Martin, já citada, em conversa: talvez o que fazemos seja torcer a linguagem, para deixá-la vibrar em outros tempos. Aqui, precisamente, escrevo com o que escorre.
há-nexo 1:
há-nexo 2:
Quinta-feira, 18:06, Residência Vivenda Adélia Caiado
31/7/2025
Texto: Ed Freitas
Áudio-visual: Ed Freitas
#5 Concerto molhado para peixes brilhantes, La excitação del paisaje – río, de Óscar Bueno por Letícia
La excitación del paisaje – río, do artista espanhol Óscar Bueno, é um trabalho performático site-specific composto por três peças que acompanham os ritmos do dia — manhã, tarde e noite. Desenvolvido em relação direta com cada território onde é apresentado — neste caso, o rio Mondego e seus arredores, na cidade de Montemor-o-Velho, Portugal —, o projeto propõe um mergulho em camadas sensoriais da paisagem, posicionando o rio como presença coautora da experiência.
Por meio da música, movimento e criação de imagens, o artista não busca representar o ambiente, mas provocar aquilo que desloca nossa forma de habitá-lo. Nesse contexto, o corpo torna-se superfície de escuta e afecção, ativando uma atenção expandida para o ambiente e suas relações.
“Trata-se de gerar um ligeiro distanciamento do familiar para abrir espaço para outras formas de ser”, afirma o artista. Um exercício de escuta que não se limita aos sentidos humanos, mas se abre à multiplicidade de espécies, presenças e forças que constituem a paisagem. Assim, alinha-se com aquilo que desestabiliza a lógica moderna da representação, dissolvendo hierarquias entre sujeito e objeto. O rio, aqui, não é pano de fundo, mas presença vibrátil, coabitante e ativa.
Errância e acaso parecem ser estratégias que orientam todo o processo de composição do trabalho, convertendo a criação artística em prática relacional entre corpo e ambiente. Este texto se constrói como um relato reflexivo imerso nesse percurso errante, permeado por observações subjetivas, para pensar o entrelaçamento entre corpo, paisagem, arte contemporânea e práticas que desafiam os modos hegemônicos de percepção e presença.
primeira peça
Embora prevista para acontecer de manhã, a peça se realizou à tarde — deslocamento temporal que já anuncia a lógica do trabalho: adaptar-se às condições que o contexto oferece. A indicação de localização diz que devemos seguir pela estrada de terra à beira do rio, atentos aos latidos de grandes cães que marcam o ponto de entrada.
Seguimos por esse caminho e chegamos a uma clareira no momento exato da travessia de um rebanho de ovelhas e bodes guiados por um pastor e seu cão, que passam por uma antiga ponte de madeira que compõe a paisagem. Esse momento — aparentemente fortuito — funciona como prólogo: o trabalho se articula com o que já pulsa no lugar, escutando seus ritmos e fenômenos como elementos vivos de composição.
Camuflagem é a ideia que orienta essa primeira parte. Pequenos gestos, movimento, som, imagem, materiais e objetos se inserem entre os elementos da paisagem como mais uma dobra, não como imposição. O rio se apresenta em planos sobrepostos, duplicações e reflexos enfatizados pelo uso de espelhos manipulados pelo artista.
Nesse momento me lembro da imagem de Mirror Piece, de Joan Jonas onde mulheres com espelhos sobre o corpo, refletindo a paisagem e o público ao redor, dissolvendo fronteiras entre corpo, ambiente e olhar, fragmentando e camuflando o visível, onde ver e ser visto se tornam indistintos. De forma semelhante, o corpo do artista, como espelho, torna-se superfície — reflexividade encarnada.
Joan Jonas, Mirror Piece I, 1969
segunda peça
Embora prevista para acontecer de manhã, a peça se realizou à tarde — deslocamento temporal que já anuncia a lógica do trabalho: adaptar-se às condições que o contexto oferece. A indicação de localização diz que devemos seguir pela estrada de terra à beira do rio, atentos aos latidos de grandes cães que marcam o ponto de entrada.
Seguimos por esse caminho e chegamos a uma clareira no momento exato da travessia de um rebanho de ovelhas e bodes guiados por um pastor e seu cão, que passam por uma antiga ponte de madeira que compõe a paisagem. Esse momento — aparentemente fortuito — funciona como prólogo: o trabalho se articula com o que já pulsa no lugar, escutando seus ritmos e fenômenos como elementos vivos de composição.
Camuflagem é a ideia que orienta essa primeira parte. Pequenos gestos, movimento, som, imagem, materiais e objetos se inserem entre os elementos da paisagem como mais uma dobra, não como imposição. O rio se apresenta em planos sobrepostos, duplicações e reflexos enfatizados pelo uso de espelhos manipulados pelo artista.
Nesse momento me lembro da imagem de Mirror Piece, de Joan Jonas onde mulheres com espelhos sobre o corpo, refletindo a paisagem e o público ao redor, dissolvendo fronteiras entre corpo, ambiente e olhar, fragmentando e camuflando o visível, onde ver e ser visto se tornam indistintos. De forma semelhante, o corpo do artista, como espelho, torna-se superfície — reflexividade encarnada.
Ao entardecer, seguimos em grupo ao longo da margem do rio. O uso de elementos analógicos e digitais — como óculos de papel com filtro azul, sobreposições sonoras em fones de ouvido — com pausas para observar coletivamente o espaço ativa novas formas de atenção. As ações do artista, por mínimas que sejam, confundem os limites entre o que é arte e o que é vida cotidiana.
Por meio dessas delicadas intervenções compositivas passamos a atentar para aquilo que o hábito e a vida urbana muitas vezes nos aliena: o canto dos pássaros, o movimento das águas, das árvores, a oscilação da luz, a composição da paisagem. Uma coreografia de coexistências.
Em determinado momento, um pequeno barco azul, guiado por um jovem, cruza o rio transportando um objeto disforme — prateado, espelhado. Pedra? Escultura? Meteoro? De onde vem? Para onde vai? O mistério se sustenta em sua opacidade. Disposição no lugar de imposição, gesto de deslocamento que ecoa todo o trabalho: mover para ativar, deslocar para rever.
No fim desse percurso, algo emerge da água sob a ponte onde nosso grupo está posicionado — um microfone no meio do rio, canto molhado e corpo performático que se oferece em gesto, voz e movimento.
O artista canta como uma sereia cuír e se move em profunda conexão e ressonância com o entorno. Suas canções narram e evocam a força do rio, sua ancestralidade, a grandeza de conexão e coexistência. A aparição desse corpo, posicionado de modo “estranho/oblíquo” na paisagem, torce e desorienta nosso eixo perceptivo.
Seus movimentos compõe uma dança que agita sedimentos profundos e trazem à tona a presença vibrátil do que estava oculto.
terceira peça
Embora prevista para acontecer de manhã, a peça se realizou à tarde — deslocamento temporal que já anuncia a lógica do trabalho: adaptar-se às condições que o contexto oferece. A indicação de localização diz que devemos seguir pela estrada de terra à beira do rio, atentos aos latidos de grandes cães que marcam o ponto de entrada.
Seguimos por esse caminho e chegamos a uma clareira no momento exato da travessia de um rebanho de ovelhas e bodes guiados por um pastor e seu cão, que passam por uma antiga ponte de madeira que compõe a paisagem. Esse momento — aparentemente fortuito — funciona como prólogo: o trabalho se articula com o que já pulsa no lugar, escutando seus ritmos e fenômenos como elementos vivos de composição.
Camuflagem é a ideia que orienta essa primeira parte. Pequenos gestos, movimento, som, imagem, materiais e objetos se inserem entre os elementos da paisagem como mais uma dobra, não como imposição. O rio se apresenta em planos sobrepostos, duplicações e reflexos enfatizados pelo uso de espelhos manipulados pelo artista.
Nesse momento me lembro da imagem de Mirror Piece, de Joan Jonas onde mulheres com espelhos sobre o corpo, refletindo a paisagem e o público ao redor, dissolvendo fronteiras entre corpo, ambiente e olhar, fragmentando e camuflando o visível, onde ver e ser visto se tornam indistintos. De forma semelhante, o corpo do artista, como espelho, torna-se superfície — reflexividade encarnada.
Com a chegada da noite, a escuridão revela mais do que esconde. O corpo agora veste um indumento composto por óculos e um macacão que cobre todo o corpo, adornado por lantejoulas e detalhes cintilantes — algo entre um zentai aquático e uma criatura sci-fi. “Uma criatura metade monstro do pântano, metade sereia”, como diz o próprio artista.
Um corpo híbrido que habita o limiar entre profundidade e superfície, entre dentro e fora, entre luz e sombra, e nos convida a ver o escuro.
Somos guiados por luzes de lanternas que recortam o espaço e conduzem nossa visibilidade para um corpo que se move produzindo corporeidades outras. A paisagem se transforma em um campo de efeitos especiais analógicos: reflexos, luzes e movimento constroem duplicações, sombras, inversões, aparições e desaparecimentos, compondo com sons distorcidos, música experimental e canto.
A sereia cuír agora canta novamente. Canta com e para peixes brilhantes que irrompem a superfície da água, com e para os pássaros, cães, cigarras, rãs e morcegos, para o rio e para os que ali estão — ocultos ou visíveis. Um coral interespécies. Um concerto molhado.
Cantarola como quem cuida. Como quem reverbera. Como quem não se impõe, mas se oferece.
Ao longo do percurso, pensei repetidas vezes sobre a quebra da expectativa com a ideia de espetáculo, sobre não se deixar seduzir pelo virtuosismo atraente da música, da dança contemporânea e da performance como desempenho.
Nesse trabalho o interesse parece estar não na ação de um sujeito, mas no acontecimento — naquilo que emerge do entre, das relações, dos fenômenos e afetações com o ambiente, naquilo que é mais mundano.
Uma valorização da experiência corporal situada, da escuta atenta ao “espaço público natural coabitado”, onde o corpo está posicionado como canal e superfície de reverberação. Penso que contemplar é, sobretudo, um modo de estar — uma atitude ativa de escuta do campo sensível que permite que o mundo nos atravesse antes que possamos reagir a ele.
Se há dança, está no movimento na água com seus brilhos, redemoinhos e reverberações, na multiplicidade de sons e sensações, nas árvores, nos reflexos duplicados e invertidos na superfície do rio que viram o mundo ao avesso.
Participar do trabalho é partilhar um segredo comum, fazer grupo, partilhar tempo, deslocamento e pequenos espantos. Tudo move e é movido — como uma pedra jogada no meio do rio, ou um peixe brilhante que irrompe a superfície da água.
A dança está no giro perceptivo que partilhamos: rever o mesmo por outro ângulo.
Ao propor um mergulho nas camadas sensoriais da paisagem, tomando o rio, o ambiente e o contexto como presenças coautoras da experiência, La excitación del paisaje – río convoca o corpo a um exercício errante de escuta e atenção expandida.
Um estar-com que dissolve fronteiras dicotômicas entre arte e vida, sujeito e ambiente, dentro e fora, superfície e profundidade — em um gesto político de reorientação da percepção.
Diante do esgotamento de um mundo em ruína baseado no extrativismo, na dicotomia e no controle em nossa relação com aquilo que consideramos “natureza”, o trabalho de Óscar Bueno aponta para modos de estar mais implicados, mais porosos e atentos ao que vibra entre as coisas.
Como propõe Donna Haraway, não há natureza separada da cultura, apenas naturezasculturas — tramas de coimplicação entre humanos e mais-que-humanos.
La excitación del paisaje – río se oferece como convite a praticar a paisagem como espaço vivo, vibrante, atravessado por múltiplas perspectivas. Uma prática ética de estar-com que reconhece o mundo como campo de relações sensíveis, onde a alteridade e a co-dependência são elementos constitutivos da experiência de estar vivos.
Talvez a arte possa nos ajudar a praticar o sensível como espaço comum, posicionando-o como um território de reaprendizagem coletiva da percepção e da atenção. Aprender a re-parar como quem acaricia e é acariciado por um rio.
Cantarolar um concerto molhado para peixes brilhantes que irrompem a superfície espelhada da água. E depois retornar à margem com o corpo molhado e levemente desorientado — como quem, por um instante, vibrou em consonância com a força extraordinária que é a vida em sua multiplicidade.
31/07/2025
Texto: Letícia Maia
Fotos: Susana Paiva
Vídeo: Letícia Maia
#6 O samurai errante e o rio do mundo: poética do deslocamento em Mundagawa de Orquestina de Pigmeos por Letícia Maia
Mundagawa, obra do coletivo Orquestina de Pigmeos — formado pelos artistas Nilo Gallego e Chus Domínguez — em colaboração com Katsunori Nishimura, músico e artista japonês radicado na Espanha, foi apresentada como uma travessia visual e sonora onde história, mito, biografia e ficção se entrelaçam, criando uma experiência marcada pelo estranhamento e pela poesia.
No filme, Katsunori dá corpo a um samurai errante que caminha em silêncio pelo curso do rio Mondego, desde a foz até o seu nascimento — entre arrozais, salinas, margens, o próprio rio, o mar, atravessando também partes da cidade de Coimbra. Sua trajetória não é apenas geográfica, mas uma navegação entre tempos e territórios, por memórias possíveis, suspensas entre o real e o ficcional, dando relevância aos encontros e relações que se constroem pelo caminho.
Inspirado na história de samurais japoneses enviados à Europa no século XVII para negociações diplomáticas, comerciais e políticas — em que depois da missão fracassada uma parte deles nunca retornaram ao Japão, tornando-se expatriados — Mundagawa embarca na hipotética jornada de um samurai que trafega por esse território, cruzando história ficcional e biografia. Katsunori, corpo estrangeiro e silencioso, observa, escuta e nos guia. Sua presença, situada entre o mundano e o onírico, provoca um deslocamento perceptivo: a figura de um samurai deslocado no tempo-espaço, mas intensamente ancorado no presente.
O título Mundagawa não tem tradução literal, mas a palavra pode ser interpretada como a fusão de “Munda” — possível alusão ao rio Mondego ou ao próprio “mundo” — com “gawa” (川), que significa “rio” em japonês. Assim, o nome pode ser lido como “rio do mundo”. Esse neologismo reforça a ideia de uma travessia cultural e simbólica, de um corpo estrangeiro que flui por territórios híbridos onde memória, ficção, paisagem e território se entrelaçam.
A montagem de Mundagawa se constrói por fragmentos — exercício de colagem de imagens, sons e acontecimentos — que dialogam com universos distintos e criam uma estrutura aberta, guiada também pelo acaso e pela improvisação, princípios centrais processo de trabalho do coletivo. A percepção do tempo no filme é espiralar, deslocamento continuo, conduzido pela presença, pelo movimento cíclico e pela gestualidade coreográfica do percussionista.
A música experimental — composta em uma língua-mãe já não totalmente própria, mas distorcida e híbrida — atravessa o filme como uma rede invisível que entrelaça tempos e geografias. Em cortes abruptos, somos transportados a um estúdio onde duas mulheres japonesas manipulam frequências e texturas sonoras. O som parece materializar uma busca por sintonia e ressonância — como se a paisagem do Mondego e o corpo do samurai fossem lidos, tocados e ressoados à distância. Um ritual acústico de contato, uma comunicação ancestral e futurista que dialoga com a travessia de Katsunori.
A poética do filme, embora se valha de recursos épicos, não se manifesta em grandes feitos ou batalhas, mas na repetição silenciosa e contemplativa do caminhar errante. Ao evocar uma situação histórica por uma perspectiva contemporânea que se cruza com a biografia do artista, Mundagawa constrói uma poética, onde o estranhamento e a alteridade são forças capazes de recriar narrativas e abrir novas leituras sobre identidade, memória, pertencimento, deslocamento e travessia.
Nesse sentido, o filme ressoa com a frase “Foreigners Everywhere” (Estrangeiros em todo lugar), que deu título à 60ª Bienal de Veneza. Criada pelo duo Claire Fontaine, a obra — composta por esculturas em neon que repetem a expressão em diversas línguas — carrega uma potência simbólica fundamental: além de problematizar a condição sociopolítica de ser marcado como estrangeiro, reconhecendo que estes estão em todos os lugares, ela nos lembra que a estrangeiridade é também uma condição existencial. Somos, no fundo, sempre estrangeiros — onde quer que estejamos — vivendo sob um estado constante de deslocamento e estranhamento.
Claire Fontaine: Foreigners Everywhere / Stranieri Ovunque (60th Internationale Art Exhibition / 60. Esposizione Internazionale d’Arte), 2024, Arsenale, Venezia.
Ao apresentar um corpo estrangeiro, marcado pela diferença, que não se encaixa na paisagem habitual do rio Mondego, Mundagawa ecoa essa reflexão. A presença silenciosa do samurai — deslocada, integrada e, ainda assim, não pertencente — provoca um desvio na percepção. A ficção especulativa e onírica do filme desloca e fragmenta o cotidiano, desarticula o hábito, desterritorializa o olhar. É nesse estranhamento, nesse olhar que se renova diante do conhecido, que se inscreve sua poética.
Mundagawa é, como o percebo, uma meditação sobre o deslocamento — sobre uma identidade que se dissolve e se refaz no encontro com o outro e com os lugares que habita. É também um exercício de fabulação especulativa sobre o tempo — mítico, histórico e cinematográfico. O samurai de Katsunori não é apenas um personagem, mas um vetor de sentidos, que carrega em seu silêncio uma escuta profunda do mundo. No encontro entre a margem portuguesa e um rio imaginário que corre desde o Japão, o filme me faz perguntar: o que permanece quando já não se pode voltar? Quem guarda os mitos que montam e remontam nossos imaginários de pertencimento?
Estar em residência no Festival Citemor, a convite do performingborders, tem me permitido conviver com os processos dos artistas, entre eles a Orquestina de Pigmeos. As conversas ao longo dessas semanas revelaram uma metodologia, sustentada por uma prática artística interdisciplinar que transita entre arte sonora, cinema, performance e música experimental. Seus projetos se desenvolvem de modo situado, a partir de imersões prolongadas nos territórios, em escuta sensível às paisagens, às pessoas e comunidades, permitindo que o acaso, o risco, o erro e a improvisação atuem como forças criadoras. O filme pode ser lido, também, como uma homenagem a Katsunori, cuja maneira de estar no mundo é atravessada pela música. Sua escuta é gesto, presença, modo de vida. Para ele, fazer música não é apenas criar — é experimentar o mundo. É transformar o cotidiano em matéria sonora, onde som e existência se confundem e a arte se faz inseparável da vida.
04/08/2025
Texto: Letícia Maia
Fotos: Susana Paiva
MARIA: atriz, criadora, estrela em expansão.
PAULA-ED: performer, ensaísta têxtil, bordadora de intuições.
CARLOS JESÚS: profeta bastardo, tradutor intergaláctico.
Fotos: proposições e composições de Maria Garcia Vera, na Vivenda Adélia Caiado
Uma festa de aniversário feita de fragmentos.
Instalação improvisada: galhos secos tramados com crochet, flores mortas, PowerPoints impressos e um bolo feito de livros.
(Som de microfone chiando. Um projetor acende por acidente. Paula-Ed está com um par de meias. Carlos Jesús segura uma balaclava. Maria entra, assiste, não entende.)
MARIA
Vocês tão montando a cena?
Ou desmontando?
PAULA-ED
Nem cena. Nem desmontagem.
É o acúmulo depois do palco.
A poeira. O enjoo. O que não cabe na crítica escrita.
Estamos montando tua festa, Maria.
Ou teu velório performativo.
Ainda estamos decidindo.
CARLOS JESÚS
É um nascimento!
Ou um portal.
Tu abriu o palco e a gente saiu pela lateral, sem saber pra onde.
(Paula-Ed veste o elmo de galhos.)
PAULA-ED
Carlos… esto no es muy… confortável?
CARLOS JESÚS
Não é pra conforto, Paula.
É pra transmudar.
Essa antena conecta com as estrelas.
Mira! Maria descalçou. Os sinais estão chegando.
(Maria senta. Observa em silêncio. Anota.)
PAULA-ED
(Espia as meias de lã.)
Essas são tuas, Maria?
Não sei como elas vieram parar aqui…
MARIA
(Sem sorrir.)
São.
CARLOS JESÚS
Mas são do futuro.
(Maria sai pra fumar. Uma luz azul acende. Um bolo feito de livros aparece na mesa junto com outros apetrechos)
(O espaço é um caos cerimonial: flores secas, PowerPoints colados torto, crochet, uma máquina de costura. Carlos pendura a coroa-pulga. Paula-Ed decora o bolo com folhas arrancadas de um caderno verde bandeira. Maria volta. Finge não notar.)
CARLOS JESÚS
Rápido. Ela tá vindo.
Esconde o mejunje!
PAULA-ED
Deixa o mejunje. É parte do trabalho.
O bolo tá pronto. Feito com PowerPoints vencidos.
Não sei se é comestível.
CARLOS JESÚS
Mas é legível?
PAULA-ED
Não. E ainda bem.
Bolo assim não se digere.
Se fermenta.
(Maria entra. Olha tudo.)
MARIA
Ainda estão montando a cena?
PAULA-ED
Ainda não.
Talvez… uma festa?
De inícios?
CARLOS JESÚS
Surpresa!
MARIA
Pra quem?
PAULA-ED
Pra ti. Parabéns!
MARIA
Por quê?
PAULA-ED
Porque tu nasceste em cena,
Repetidas vezes.
E a gente não sabe o que fazer com as pulgas na coroa.
Tentando não desconectar.
(Maria sobe num banco improvisado. Gesticula. Dirige.)
MARIA
Voltem ao início.
Mas sem repetir igual.
Comecem de novo.
Como eu fiz.
(Paula-Ed veste o tecido transparente com palavras mal bordadas.)
PAULA-ED
(Lendo mal.)
“Mira… el… silên…cio condensado…”
É teu?
MARIA
É.
O silêncio é condensação do real.
PAULA-ED
Como assim?
MARIA
Política silenciosa tem potência!
PAULA-ED
Hã?
MARIA
As palavras estão tóxicas, Paula.
Repita-as.
Reborde-as.
Re-diga.
PAULA-ED
Até que o início se canse e abra?
Como é difícil começar...
MARIA
Mas tu entendeu?
PAULA-ED
Entendi como quem não fecha.
Por isso essa festa.
Esse bolo.
Essa tentativa de interpretar.
CARLOS JESÚS
(Espiralando com a coroa-pulga.)
Este figurino é do prólogo?
CARLOS JESÚS
(Profético.)
Pra vesti-lo, tem que aguentar a coceira.
(Paula abre o caderno verde.)
PAULA-ED
“Ela falou sobre começar como quem planta,
mas sem esperar colheita.
Como quem se deita nua sobre livros,
não pra ler, mas pra ser lida por eles.”
Tua peça, Maria, não explicou.
Obrigou resposta.
Respondi com crochet.
Com restos.
Com crítica vestida de poesia e carne seca.
Esse é meu presente.
Esse bolo de “não sei o quê”.
CARLOS JESÚS
Tu foste canal.
Como eu.
Disseste: “14 ou 17 é dia 01.”
Eu entendi.
É ciclo.
É reinício.
É coreografia celeste de palavras tortas e meias suadas.
Isso é mojón.
Isso é arte.
Tu me disfarçaste de piolho
e eu agradeço.
(O bolo começa a ruir. Paula salva um pedaço bordado com “enjundia”. Carlos sopra as velas. Maria reorganiza com o olhar.)
PAULA-ED
(Público = Maria)
Nossa crítica é uma cena.
Que não termina contigo.
Tu és personagem e autora involuntária.
CARLOS JESÚS
Jesus Crista da Via Láctea.
Atriz do enjoo e do jolgorio.
MARIA
Mas eu só queria… começar algo…
PAULA-ED
E começaste.
O que ficou em nós agora responde.
Com objetos.
Com personagens.
Com esse teatro que é crítica —
com pulgas.
CARLOS JESÚS
E com perguntas vestidas de imaginação.
PAULA-ED
Tu és como Lily, nua sobre livros.
Hoje és quem nos cobriu de pulgas?
(Maria e Carlos riem.)
MARIA
O que eu faço com isso?
PAULA-ED
Nada.
Ou tudo.
Come.
Com a mão.
Reinicia.
Nosso presente é tua atuação:
Não como interpretação literal.
Mas instalação.
Continuação torta.
CARLOS JESÚS
Tu criaste um trabalho que não termina.
A resposta também não.
Ela escorre.
Gruda.
Fermenta.
MARIA
Quem bordou “sentar un preferente”?
PAULA-ED
Fui eu.
Soou bonito.
Não sei o que quer dizer.
CARLOS JESÚS
Quer dizer tudo, Paula.
É o que se sente antes de entender.
(Luz pisca. Silêncio. Todos sabem algo.)
MARIA
Vocês acham que estão me surpreendendo?
PAULA-ED
A gente só queria...
Celebrar.
Vestir o que tu nos deste.
MARIA
(Veste suas meias verdadeiras.)
Vocês acham que isso tudo…
não estava previsto?
CARLOS JESÚS
Foste tu que me enviaste.
Desde Raticulín.
(Risos.)
(Maria desamarra o tecido de Paula. Enrola-se. Senta no chão.)
MARIA
(Interpretando.)
Pra quem estou falando?
CARLOS JESÚS
Pra nós.
Pra eles.
Pra quem já foi.
E tá voltando.
PAULA-ED
Não entendi a pergunta, pode repetir?
CARLOS JESÚS
Pra quem ler.
Pra próxima pulga.
Pra tua peça que segue… agora… aqui.
MARIA
(Deitada, olhando pro alto.)
“Mira o céu.
1…2…7…41…
Tiros.
Estamos nuas.
Uma peça despedaçada cai.
Textos seguem em revoada.
E vocês?
deitem quantas vezes for preciso.
Vejam as pistas.
Reencenem a versão.
Sigam com ela.”
FESTA, RESTO, FIGURINO E PROFECIA: CENA QUE NÃO SE EXPLICA
Esta peça nasce como um texto-resposta, em recusa de ser (apenas) resposta. Antes, ela se desdobra como matéria proliferante, que se instala no espaço instável entre crítica e criação. O gesto que a inicia vem de um convite: responder a uma obra performativa La Vía Láctea, de Maria Garcia Vera. No entanto, como responder na linguagem quando a própria obra dissolve a resposta como finalidade?
O que se apresenta aqui não é um "comentário", tampouco uma reconstrução do objeto original. É uma dramaturgia que se apropria da linguagem da própria arte para reencenar o afeto que dela emergiu. Como num ritual ampliado, propõe-se uma festa, uma cena, uma instalação dramatúrgica, um bolo de livros, uma palavra vestida em crochet e resíduo.
Há três personagens, que são também três instâncias de trabalho dramatúrgico:
Maria, a criadora encarnada, que sabe que é seu aniversário, mas entrega o lugar central à outra, como quem entrega um papel para ser interpretado com a alegria que ela não consegue acessar;
Paula-Ed, sua dobradiça simbólica, que se faz passar por aniversariante numa performance hesitante e devotada, tentando traduzir a festa num gesto de amor e substituição;
Carlos Jesús, profeta intergaláctico, espécie de médium carnavalesco e filósofo bastardo, anunciador do destino cósmico da protagonista, aquele que revela que Maria é Jezúza Khrista da Via Láctea inteira.
A dramaturgia investiga o espaço do erro, da dúvida, da repetição, da tentativa como força poética. Uma dramaturgia da hesitação e do equívoco, onde o teatro é o lugar do não-saber que pulsa. Há um deslocamento do centro: Maria se multiplica como cena e como personagem, cede o protagonismo para uma Paula-Ed que hesita, falha, tenta; e é nesse esforço, nessa entrega imperfeita, que se funda a potência teatral da encenação.
Como o convite era feito no interior de uma prática crítica e curatorial, o texto escolhe deliberadamente não ocupar o lugar habitual da crítica. Ele recusa o protocolo do juízo, da mediação clara, da leitura hierárquica. Em vez disso, responde confundindo a lógica crítica com a linguagem da própria obra: montagem, acumulação, cacos, reinício, voz fragmentada, anotação costurada, pergunta performada.
Este é o terceiro experimento por mim realizado como fiador para o Citemor, no sentido que fiador (garantidor), fiadeiro (garantidor de fios) dá ao termo: como quem puxa um fio, expande um novelo, enreda um pensamento.
O primeiro experimento tramava texto e signo, em um volume lúdico de crítica-imagem.
O segundo desdobrava-se em paisagem, a crítica-rio.
Este terceiro, entrega-se ao volume figurinal de uma dramaturgia dentro da dramaturgia, como um tecido de perguntas que não se responde, apenas se encena.
O texto não propõe a peça como reconstrução da performance original, mas como sua reverberação em outro regime. Ele se funda em algo que não pode ser traduzido diretamente: um resto que ficou no corpo, uma emoção não nomeada, um gesto de espectadora que vira autora. Se em La Vía Láctea havia algo de uma saudação celebrativa performativa, aqui essa festa é retomada como ritual de escrita dramatúrgica, uma dramaturgia-festa que se recusa a acabar, não menos deboche sobre o real.
Escrito para uma companhia de três atores muito experientes, a ser encenado em um palco não convencional, o texto exige uma presença densa, capaz de sustentar o excesso e o silêncio, o trágico e o burlesco. Há um trabalho poético com a linguagem que pede intérpretes precisos, mas abertos ao desvio. A forma do texto comporta o pensamento da hesitação e da ruína, mas também da revelação, do rito e da transformação. Como festa, como cena de passagem, como crítica que se traveste em ensaio aberto.
Aqui, as pulgas são metáforas de artistas: vivem do sangue, mas na peruca artificial não há sangue, então como sobreviver? O texto responde: as pulgas precisam descansar. Só pulgas descansadas podem amar. É também sobre isso esta dramaturgia, o descanso, o amor, a festa.
Há-nexo 01 (prova de figurino)
Há-nexo 02 (apanhar conexões)
07/08/2025
Texto: Ed Freitas
Fotos e Vídeo: Ed Freitas, em colaboração com Maria Garcia Vera e Xavier de Sousa
La Vía Láctea, de María García Vera, é um projeto de investigação artística que parte de questionamentos sobre a capacidade de uma pessoa modificar o seu destino. Em um contexto político-social onde imaginar alternativas às nossas formas de vida e produção parece cada vez mais difícil, o trabalho questiona como dar um primeiro passo para ativar uma direção diferente, ancorada no presente.
Partindo de um universo extenso de referências, o trabalho propõe uma travessia sensível que perpassa os limites entre corpo, palavra, pensamento, linguagem, imagem e presença. Apresentado como um solo cênico — ou uma conferência performativa, como a própria artista define — com toques de auto-ficção, eu diria, La Vía Láctea, mais do que representar uma narrativa, se coloca como uma investigação de possibilidades de enunciação e presença.
Propõe conexões improváveis entre elementos aparentemente dissonantes, como objetos, memórias, imagens, citações literárias, teóricas e filosóficas, música, auto-ficção, fragmentos de diálogos, magia, humor, telepatia, sonhos premonitórios e desespero — criando associações inesperadas para construir uma espécie de constelação performativa.
A peça se organiza em uma sequência complexa, composta por vários trechos, sessões ou “cenas”. Dentre eles, trago neste texto algumas imagens, fragmentos e sensações que mais ficaram marcados em minha memória — sem pretender dar conta do todo, o que, inclusive, me parece ser impossível e indesejável, visto que a própria artista nos diz que “é sobre não ver o todo”.
Em uma dessas cenas, a artista evoca e reperforma a fotografia Lily (2008), de Melanie Bonajo, onde uma mulher nua se equilibra sobre três pilhas de livros. A imagem, logo no início da peça, parece deslocar o saber de sua verticalidade tradicional para uma experiência encarnada, tátil e subjetiva. Em outro momento, uma lista de insultos agressivos dirigida a figuras sociais, políticas e cotidianas culmina em fantasias de violência com “artilharia pesada”. Um rito de expurgação que beira o cômico, mas que também revela dimensões de autoagressão e frustração coletiva diante de um cenário sociopolítico exaustivo, repetitivo, que nos parece sem saída.
Além dos prólogos, a artista nos convida a percorrer imagens aparentemente desconectadas: um piolho em uma peruca, o céu estrelado e o caminho do leite — atravessadas por transições, acúmulo e aceleração que costuram esses fragmentos numa lógica de justaposição e deslocamento.
E aqui, minhas memórias são confusas, sobrepostas, fragmentadas e desordenadas: vejo a artista saltando em uma perna só sobre um plástico transparente, como um piolho em uma peruca explorando a sensação de exaustão por buscar alimento em um lugar onde não há; a visão cósmica de um céu estrelado com “milhões de pontos luminosos”, projetado em uma parede de pedra efeito produzido com uma lanterna e um escorredor de macarrão; o resgate de um vocabulário de palavras “maltratadas” e gírias de sua língua-mãe (Múrcia); a artista pegando as mãos de alguém do público para falar sobre as estrelas, sobre sonhos e os sons que elas devem fazer; depois sentada desenvolvendo uma “dança de mãos” com uma música de fundo, etc.
Em certo momento, somos convidados a reorientar nossa posição em 90 graus. Ao virar, ficamos de frente para uma porta vazada que emoldura o céu estrelado e a lua. Não mencionei antes, mas o trabalho foi apresentado nas ruínas da Igreja de Santa Maria Madalena, em Montemor-o-Velho – uma construção de pedra, sem teto, anexada ao castelo. Esse céu real, visível, se funde às imagens cósmicas evocadas. Depois do giro, minha memória salta para a cena de uma “mulher planta”, onde a artista posiciona um conjunto de plantas, galhos e flores sobre seu corpo e os anexa utilizando fita adesiva colorida. Em pé, sobre um plástico fino e transparente, derrama uma garrafa de leite sobre a própria cabeça, tão natural quanto artificial — imagem que me parece evocar renascimento e nutrição, conectando-se com a ideia de via láctea que guia o trabalho.
A apresentação se constrói de forma cotidiana e direta: a artista conversa com o público, aciona seus dispositivos tecnológicos, como computador e celular, para acessar som, imagem e texto; expõe os papéis onde há o roteiro da peça e onde lê a lista de palavras que está dizendo; comenta suas próprias escolhas poéticas e materiais. Assume o artifício e a estrutura aberta, convidando o público a imaginar acontecimentos, mas deixando evidentes os dispositivos que opera — assumindo o que faz, expondo a não fixidez e a abertura flexível da estrutura do trabalho.
Essa estrutura se manifesta como um processo acumulativo e vivo, uma dramaturgia performativa que se estrutura como hipertexto, aproximando-se da noção de edição e montagem cinematográfica. Cada apresentação incorpora acontecimentos singulares de ensaios e apresentações anteriores, integrando sugestões e observações do público — amigos, profissionais ou pessoas desconhecidas — fazendo do trabalho um repertório em constante expansão, que nunca se repete exatamente igual. Dessa forma, a lógica que orienta o trabalho não é linear nem causal, mas rizomática — orientada por relações afetivas, associativas e intuitivas, valorizando a força relacional entre os fragmentos e sua capacidade de mover algo em nós.
Essa abordagem não linear e em constante construção é enfatizada pela artista como um “início de possíveis começos”, um “início de inícios” que se propõe a “abrir novos caminhos”. Posiciona-se como um campo de perguntas abertas que se recusa a se fechar em uma estrutura definida. Um gesto de recusa à ideia de um produto acabado, afirmando o inacabamento como potência e reinventando o ensaio como parte constituinte do trabalho. Uma estrutura rizomática, não linear e descentralizada, que não busca um sentido coeso para esclarecer ou ordenar, mas se interessa por habitar a ambiguidade e a incerteza como matéria cênica e de pensamento, oferecendo mais perguntas do que respostas.
Me parece muito interessante como o uso da palavra e da fala são tomados como ação no trabalho, onde a fisicalidade da linguagem opera como dispositivo de mudança de estados corporais — não apenas como relação de significados. A fala não pretende explicar a realidade, mas des-explicá-la, como palavras-semente lançadas ao público para deixar emergir e brotar o assombro diante de cada acontecimento.
Em diversos momentos, me identifiquei com o fluxo contínuo, acumulativo, acelerado, caótico e impaciente de pensamentos e ações que a artista materializa e articula — um acúmulo que, paradoxalmente, produz o efeito contrário: suspende, imobiliza e lentifica. Em um contexto saturado por estímulos, atravessado por dispositivos tecnológicos e por uma multiplicidade de informações e discursos que nos deixam exaustos, fatigados e muitas vezes sem ação, La Vía Láctea colabora para que possamos refletir sobre as tensões e os limites da racionalidade produtivista, do pensamento linear cartesiano e da busca por respostas prontas e imediatas.
O trabalho insiste na “exaustiva tentativa de encontrar uma saída no lugar errado”, como forma de criticar uma lógica de mundo que nos esgota, levando ao limite essa acumulação e excesso de informação, promovendo uma espécie de processo de exorcismo e expurgação. Como a própria artista afirma, é preciso “exagerar e inventar tudo para que algo ajude a viver de outra maneira”. Transitando entre o humor, o desespero e a potencialidade de ação, essa fabulação performativa não se reduz à fantasia, mas opera como estratégia para desestabilizar certezas e abrir brechas no cotidiano — um modo de reencantar a realidade, ancorando-se no presente, a fim de dar vazão a uma cotidianidade extraordinária.
Se o destino é linha dura, talvez seja preciso encontrar linhas flexíveis e linhas de fuga — sem começo nem fim, mas sempre como um meio por onde cresce e transborda. Fazer caminho por essa linha descontínua, saltar bem juntos. De referente a preferente. Uma constelação performativa para desorganizar, decompor, cruzar, mover, falar e bailar sobre as ruínas.
07/08/2025
Texto: Letícia Maia
Foto: Susana Paiva
#9
Ensaiar palavras, ligar degraus, contemplar e imaginar o subir e o descer de imagens enciplopédicas
PROPOSTA DE TÍTULO MODIFICADO DEPOIS QUE AS IMAGENS FORAM EMBORA E JÁ NÃO SOUBE ENCONTRÁ-LAS PARA
AVERIGUAÇÕES
SEM
ÂNT
ICAS
ENTÃO, O TÍTULO SUMIU, DE FATO.
O corpo (até sabe, mas) não sobe.
O corpo atravessa, de trava-e-de-verso;
Degrau por Degrau, essa escada maiúscula,
Nas fissuras, a luz insinua-se como ranhura;
A escada, (que) esse corpo bordeja, velho e pulsante,
A escada não é só arquitetura, é passagem como pretexto ao verso;
Passagem física e liminaridade invisível, meu avesso, meu verso:
o entre mundos.
Subimos e descemos, e o que mais se move?!
O que mais se interpenetra como travessão, travessia?
O carro preto: aparece e desaparece,
uma luz invade o corpo,
luz que o projeta, o suspende, o recolhe.
Sombra que retorna no bem perto,
escala que se dobra,
janela que abre e fecha,
um intervalo no tempo.
De__grau Primúndio: SUBI E ME ESPATIFEI, BUFO!!
O que acontece durante o mexer de um corpo?
Que outras vidas… se movem… juntas?
Que vestígios se deixam, se levam?
O que constitui esse diálogo silencioso,
cruzo de luz e de sombra,
essa dança de presença e de ausência?
Este texto, inclusive - palavras, rascunhos.
Um bordado em construção - o texto, incluído;
também, a performance - o bordado dos corpos.
E uma escrita experimenta corpo;
[que experimenta um tempo,
que experimenta um espaço em aberto,
que experimenta imaginar, e que
experimenta ensaiar.]
De__grau Terceneeiro: AQUI REFESTELADO, COMO INVENTANDO BATENTE QUE NÃO EXISTE NO QUEBRAR DO MAR DE ITAPÕE, PORQUE A MIRAÇÃO QUEBRA, FAZ CAIR, BATE.
ANOTAÇÃO: O texto surgiu como rascunho de fórmula textual à proposição artística de Bruno Humberto, no trabalho Enciclopédia das Escadas, desdobrando a dimensão do espaço no ultrapassar do léxico das arkés, da arké+tessitura, da arquitetura, enquanto corpo borda, passagem ancestral, trânsito onde sobem, descem, atravessam e se reinventam, os quantos corpos. Entre luz que emerge e evanesce, o carro que joga escala, o som da bateria musical que se materializa, assim, o texto é experimento de ressoar com uma performance em seu movimento, som e silêncio, intensidades em um campo aberto onde múltiplas corporeidades habitam o espaço público compartilhado. Uma presença ativa(dora), um volume suspenso de tempo que resiste e se apresenta nas tensões com seu entorno. Não por acaso, o texto encar(N)a o ritmo, a pulsação e o mistério de um projeto que, a partir de Bruno, João, Mariana e Miguel, empreende o subir e o descer como transmutação da paisagem, uma dança de presença e memória no espaço situadas como transformação.
SOBRE AS IMAGENS: Tecnicamente, utiliza-se a frottage em grafite sobre papel de pauta para capturar a memória tátil e a aspereza das superfícies dos degraus, criando um volume visual denso que evoca o peso e a materialidade dos blocos de arquitetura. Em contraponto, o bordado em quilting com linha preta sobre algodão cru traça um ritmo contínuo, onde o percurso da linha se assemelha à cadência do subir e descer de uma escada, transformando o tecido em uma paisagem ritual. Essa dualidade poética entre o "bloco" e o "oco", a densidade do grafite e a leveza da linha, reflete o imaginário das escadas, degraus e batentes, entendidos não apenas como elementos arquitetônicos, mas como passagens físicas e simbólicas que registram o movimento, a presença e a memória do corpo em trânsito.
09/08/2025
Texto e fotos: Ed Freitas
intervenção sobre fotografia digital de Susana Paiva
#10 dançar com escadas para indisciplinar a relação coreográfica entre corpo e espaço
Proposta de programa performativo: Dois homens vestidos de forma cotidiana realizam essa ação em uma escada situada em espaço público. Durante toda a ação devem manter-se sempre de costas um para o outro, permitindo que o acaso sintonize seus movimentos e atraia os corpos para perto um do outro. Percorrer o espaço da escada em todas as direções e sentidos, explorando suas especificidades. Alternar e variar posições de início: cada um por uma extremidade, ambos pelo meio, ambos de baixo para cima, ambos de cima para baixo. Na escada, os dois executam aleatoriamente um repertório de gestos e movimentos elaborados em resposta à especificidade do espaço. Experimentar outras relações que não sejam a verticalidade: rolar, arrastar, engatinhar, deitar, sentar, etc. Explorar relações com partes do corpo que normalmente não tocam os degraus, ombros, antebraços, costas, palmas, cabeça, joelhos, etc. Reinventar o uso da escada durante cerca de uma hora.
Algumas notas a partir de Enciclopédia das Escadas de Bruno Humberto
Em Enciclopédia das Escadas — trabalho apresentado como resultado de uma residência artística de Bruno Humberto com colaboração de João Ferro Martins, Miguel Ângelo Santarém e Mariana Sá Marques no festival Citemor, ainda em início de processo — somos convidados a seguir por vielas de Montemor-o-Velho, vila portuguesa onde escadas brotam por todos os lados. Era tarde da noite quando iniciamos o percurso, e a vila, silenciosa e sem grandes movimentos, parecia já estar adormecida. Acomodados sempre no alto de escadarias – ponto de vista de onde se pode ter vários planos em perspectiva – observamos como luz, som, corpo, espaço, movimento e deslocamento tornam-se elementos de uma composição performática que flerta com o cinematográfico, onde realidade cotidiana se confunde com proposições artísticas intencionais.
As escadarias de espaços públicos, normalmente vistas como mero dispositivo funcional de trânsito — para passar, subir, descer —, em Enciclopédia das Escadas são tomadas como espaço de permanência, cena e coreografia. Ao percorrer diferentes escadarias em um percurso pelo alto da vila, os artistas exploram e compõem a partir de suas características físicas, formais e simbólicas, bem como dos usos e práticas cotidianas que habitam esse espaço.
Em um dos momentos que mais ficaram marcados para mim, dois homens dançam sobre um platô iluminado entre lances de escadas, explorando dinâmicas entre luz e sombra, aparição e desaparição. Seus corpos pareciam se atrair, mas evitavam o contato visual, sugerindo uma tensão entre atração e repulsa. Mas não performam virtuosismo, se concentram em uma dança composta por gestos mínimos - um vocabulário de movimentos que reconhecemos do cotidiano e que não chamariam atenção em si – andar em círculos, alterar velocidades e duração, sentar, deitar, apontar, colocar as mãos na cabeça, verificar os bolsos, apoiar-se o braço em um muro, pressionar o corpo contra a parede, espantar mosquitos sobre a cabeça, etc. Mas ao serem repetidos, fora de sua funcionalidade e contexto habitual, deixam de obedecer à ordem produtiva desse espaço público de passagem e reorganizam a performatividade corporal cotidiana. Como anotei: “a insistência em repetir esses gestos fora de contexto e de propósito promove uma mudança de perspectiva que nos faz ver o coregráfico e o poético escondido no cotidiano”.
Subir e descer escadas pode parecer um gesto meramente funcional, mas, como propõe Andrew Hewitt em Social Choreography (2005), nossos movimentos cotidianos carregam e reproduzem estruturas sociais, ideológicas e políticas. O autor chama isso de coreografia social, um modo de compreender como os corpos, ao se moverem, não apenas refletem a sociedade, mas a constroem performativamente. Não se trata de metáfora, mas de um campo de ação constitutivo — o corpo não apenas representa normas, ele as reitera e inscreve no espaço.
Ao tomar a escada — elemento arquitetônico tão presente em nossas vidas — como ponto de partida em fricção com o tempo e o espaço cotidianos, Enciclopédia das Escadas tensiona gestos e espaços aparentemente neutros, revelando sua carga simbólica e ideológica. À proposição de ações que se confundem com a vida, ativa o espaço como campo de tensão: entre função e poética, repetição e variação, expectativa e possibilidade. Escava também camadas de sentido — hierarquia, ascensão, acesso, separação, esforço — e toma o gesto cotidiano como matéria corográfica. Orientando seu interesse para o mundano, valorizando o ordinário, o comum e desafiando nossas expectativas em relação ao virtuosismo.
Nessa dinâmica, a escada deixa de ser simples suporte e se torna dispositivo de criação. Habitada por corpos que desaceleram, que não obedecem à verticalidade funcional de passagem, transforma-se em platô de permanência, terreno de invenção. Enciclopédia das Escadas, se encontra em fase inicial de processo, mas já aponta para um gesto que se revela como um potencial desarticulador do uso normativo da relação entre corpo, espaço, arquitetura e cidade.
Para mim, a ideia de enciclopédia evocada no título não remete a um saber total, mas a um conjunto de experiências encarnadas que lembram que dançar, caminhar, parar e olhar são modos de fazer – e também de desfazer e refazer – o mundo. Como uma enciclopédia viva, feita de experiências corporais, afetivas e relacionais, o trabalho evidencia que as relações entre corpo, espaço, arquitetura e cidade são atravessadas por tensões e conflitos.
Esse ato solicita uma reorientação de nossa relação corográfica funcional com o espaço arquitetônico, reorganizando a performatividade cotidiana e permitindo reparar no que normalmente passa despercebido. Mesmo em seu estágio inicial, o trabalho aponta para esse potencial gesto contra-coregráfico — tensionando e evidenciando a coreografia social e abrindo espaço a outros modos de estar e mover-se com a cidade.
09/08/2025
Texto: Letícia Maia
Foto: Susana Paiva, com intervenção de Letícia Maia
Live Art Writers Network colaborou com o festival em 2022 e 2024, fazendo parte da comissão de respostas críticas publicadas na plataforma performingborders:
2022 - performingborders x Citemor
2024 - performingborders x Citemor
A edição 2025 do projeto é programada e concebida por performingborders e Citemor, com Diana Damian Martin e o Royal Central School of Speech & Drama - Univerity of London.
Letícia Maia e Ed Freitas foram selecionados por performingborders em parceria com Dori Nigro e Paulo Pinto.
Mais informação sobre o projeto pode ser consultada em performingborders.com