Citemor 2004
ligações perigosas
ciclo de cinema ao ar livre
MULHOLLAND DRIVE
David Lynch
Seg 9 Ago | 22:30 | Castelo
Iniciámos o programa de cinema do Citemor sob o signo da duplicidade, do desdobramento de uma mulher, da oposição entre a loura e a morena. Uma característica habitual no cinema de Alfred Hitchcock e que atinge em “Vertigo”, que aqui exibimos, a sua expressão cimeira. David Lynch é, desde “Blue Velvet”, um claro devedor desta herança cinéfila. “Estrada perdida” ampliava já esse elemento, que “Mulholland Drive” leva ainda mais longe, como outros motivos vindos desse filme, e de outros - desde logo, a própria estrada.
Neste, o nome da estrada dá o título ao filme, a exemplo de “Sunset Boulevard” de Billy Wilder. Os dois partilham ainda o âmago temático: Hollywood. E nenhum hesita perante um retrato que realça a crueldade de um sistema implacável, subsistindo com a glória de uns e o fracasso de muitos mais. O filme é balizado entre a euforia dos corpos no genérico inicial - evocando o concurso de jitterbug ganho por uma das protagonistas -, prometendo um mundo de felicidade, e o falhanço, a desilusão das imagens finais: o sem-abrigo sobreposto ao barulho das luzes da terra dos sonhos, aspirante falhado reduzido à miséria anónima, seguindo-se as silhuetas fantamasgórias das protagonistas, o teatro vazio, o “Silêncio” dito pela mulher espectral.
As magníficas presenças de Naomi Watts e Laura Elena Harring dão corpo aos binómios Betty/Diane e Rita/Camilla, respectivamente. São as suas existências o que tentaremos descortinar neste mundo de sonhos e pesadelos, embalados na fabulosa música assinada por - mais uma vez - Angelo Badalamenti, mas em que pressentimos cada vez mais a mão de David Lynch. Este vai mais longe do que nunca e constrói o seu filme mais labiríntico atá à data. As interpretações multiplicam-se e o próprio alimenta o jogo, introduzindo uma lista de 10 pistas na edição em DVD e animando salas de chat na internet.
Aqui chegados, hesitamos em adiantar mais sobre o filme. Existe uma leitura da estrutura do filme mais consensual, da qual partilhamos. Partilhemo-la então e detenha-se aqui o leitor que ainda não viu o filme, retomando-a quando ele terminar. A considerar: toda a primeira parte seria um sonho de Diane. Sabemos como no processo onírico, se deslocam identidades e se concretizam desejos. É quando ela desperta para a realidade, ao que é induzida pelo cowboy ainda no sonho, que acederemos aos verdadeiros acontecimentos. Mas, mesmo então, estes não nos são dados cronologicamente, o realizador mantém a sua fé na fragmentação. Estaremos ainda no interior da mente de Diane, rememorando episódios da sua história, antes de se esvair, sonhando-se. O espectador que decida, mas atente, em abono da nossa interpretação, no seguinte: a cama com os lençóis vermelhos vista por quem nela se vai deitar no final do genérico de abertura – e aí entramos no filme! -; o robe de Diane e a alternância com outras roupas; os planos sobre a mesa em que estão, ou já não, o cinzeiro, a chávena de café e a chave azul; o candeeiro de mesa com abat-jour vermelho; o crachá com o nome da empregada de “Winkies”; e, claro, os rostos com novos nomes ou outras profissões e parentescos. Pode ser que opte por ver uma alegoria do sistema de segurança social inglês ou a revelação, dissimulada, de um suposto affaire lésbico entre Lady Diana e Camilla Parker-Bowles. Não seria o primeiro a arriscar tais descodificações!
A lógica da ordem dos sonhos permite que David Lynch abandone personagens, que não resolva focos da intriga. Não o dizemos pejorativamente. A opção permite uma espantosa densidade, intensificando a inquietação, a perturbação. E é dessa matéria que se fazem os filmes que propomos no Citemor. Muitas mais ligações perigosas poderiam ter encontrado o seu lugar neste programa, a começar pelas do filme homónimo de Stephen Frears. Aproveitamos para terminar, com o nosso pedido de perdão àqueles que cá vieram na ilusão de verem Glenn Close e John Malkovich; para já foi só o empréstimo de um título, mas pode ser que um dia...
Entrada Livre