Citemor 2004
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ciclo de cinema ao ar livre
O CRIADO
Joseph Losey
Seg 26 Jul | 22:30 | Castelo
Depois de “Vertigo”, apresentado ontem, temos “O Criado” realizado por Joseph Losey cinco anos após o filme de Alfred Hitchcock. Este havia, entretanto, alterado definitivamente a paisagem do cinema a nível mundial com “Psycho”, ao matar a heroína na primeira meia-hora de filme e com uma montagem de setenta e oito planos em quarenta e cinco segundos: o terror conhecia uma nova face. Os anos 60 tinham chegado e nada iria ser como antes, no cinema e na vida.
Não é despiciendo lembrar aqui que, ao contrário do britânico Hitch que se naturalizou americano na década de 50, o norte-americano Losey, ao ser incluído na lista negra McCarthista, optou pelo exílio na Europa e adoptou a nacionalidade inglesa. Influenciado pelo dramaturgo Bertold Brecht, definia-se como marxista romântico. Nesta primeira de três colaborações com Harold Pinter, este assina um argumento que pode ser visto como uma alegoria da luta de classes.
Dirk Bogarde desempenha o protagonista, numa composição meticulosa, prodigioso na fisicalidade e na paleta expressiva das emoções e comportamentos. A câmara encontra-o nas ruas de Londres, após o plano inicial de um edifício representativo da vetusta Inglaterra. Seguimo-lo e com ele entramos na casa de Tony (estreia cinematográfica de James Fox), o bom-vivant que o contrata para o servir “bem...em tudo!”, como lhe diz. Do criado, sabemos o nome próprio e o de família: Hugo Barret. Mas quem é ele? E quem é Tony? Sabemos tanto – ou tão pouco – de um como do outro. O filme, ancorado num preto-e-branco magnífico de Douglas Slocombe, evocativo do expressionismo, não nos reserva explicações psicologistas fáceis para o negrume que doravante aprisionará as personagens, principalmente o par principal. Hugo e Tony formam o par masculino, repositório de todas as ambiguidades. Porque permite Tony o reverso da ordem social prescrita, que se inscreve de forma definitiva após o suposto arrependimento pelo engano e pela traição, expresso por Hugo na cena no pub e que o uso cruzado do espelho evidencia? A atracção subjacente à sua relação, a homossexualidade recôndita, já se insinuaram. Os dois dizem o quanto se sentem os melhores companheiros; como no tempo do serviço militar, segundo Hugo. Tony irá mais longe, afirmando “Senti exactamente o mesmo nessa altura... uma vez.” Hugo irá ainda mais longe, claramente substituindo o papel de esposa destinado a Susan (Wendy Craig) e instigando discussões típicas de um casal.
Os sinais de ambiguidade sexual estão disseminados ao longo do filme: os posters dos culturistas por cima da cama de Vera (deliciosa estreia de Sarah Miles) e onde o destroçado Tony se deita após a partida desta e de Hugo; a reacção do criado às pernas femininas que o rodeiam na cabina telefónica e o insulto misógino proferido quando dela sai; a escultura de forma fálica com que Hugo marca o território da casa e que Tony mostra à noiva. A natureza ambígua tem, todavia, uma afirmação mais física quando Hugo toma o rosto de Tony nas mãos e, referindo-se a Susan, diz “Uma ontem... outra esta noite.” (no original em inglês o género é indefinido: “One yesterday... one tonight.”) As prostitutas chegarão de seguida e poderão ser o pretexto para a afirmação, mas quando a escutamos não o sabemos ainda, podemos pensar que é já ele o segundo termo.
A esfera do privado e a dimensão sexual são os lugares em que a dominação do outro é mais totalizante (e ainda um dia aqui haveremos de ter “Saló” de Pier Paolo Pasolini). É sintomático que a profanação do espaço alheio tenha início na casa-de-banho de uso exclusivo de Tony. Sendo a dominação uma ideia-chave d’ “O Criado”, é a este respeito elucidativa a cena do restaurante. Testemunhamos formas de afirmação do poder sobre o outro, ou a sua tentativa, em diversas instâncias: a religiosa – um membro da Igreja hierarquicamente superior sobre o outro –, a familiar – a mãe sobre a filha – e a social – uma mulher de sociedade sobre um homem. Curiosamente, este último é um cameo de Harold Pinter , pleno de ironia, uma vez que é o argumentista o que se furta ao diálogo escrito por si, limitando-se a cumprir a função fática. A anedótica cena com os parentes Lord e Lady Mounset leva a questão ainda mais longe. O poder que lhes é conferido socialmente fá-los sentir que a razão lhes pertence, mesmo quando estão plenamente equivocados ao designar por ponchos os cowboys sul-americanos. O hábito faz o monge, mas é somente aos aristocratas que aqui se aplica o ditado.
Neste Losey faustiano, Tony abre a porta de sua casa a Hugo Barret para sua perdição – ou deseja-la?, fica a dúvida... Amanhã, será toda uma família ao assalto à vida de um homem. O orquestrador é o operático Luchino Visconti, o solista é Burt Lancaster (Dirk Bogarde, nas mãos do italiano, estava reservado para “Morte em Veneza”).
Entrada Livre