Citemor 2004


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ciclo de cinema ao ar livre

VERTIGO - A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES

Alfred Hitchcock 


Dom 25 Jul | 22:30 | Castelo

À semelhança do ano transacto, temos um filme de Alfred Hitchcock a dar início ao programa de cinema do Citemor. “A mulher que viveu duas vezes” (1958) é o título que tomou em Portugal a que é para uma grande maioria de entusiastas hitchcockianos a obra-prima do realizador: “Vertigo” – no original, e como aqui a designaremos. O filme adapta a novela “D’entre Les Morts” mas poucas semelhanças mantém com aquela e mais acertado seria dizer que nela se inspira livremente. A personagem interpretada por James Stewart, um dos mais habituais protagonistas masculinos do Mestre do Suspense - o outro é Cary Grant -, retira-se da força policial que integrava, por involuntariamente provocar a morte de um colega devido à sua acrofobia, ao seu medo das alturas. É então contratado como detective particular por Gavin Elster, antigo colega de Liceu, para seguir a sua mulher, supostamente temendo pela sua sanidade mental e pela sua vida. Madeleine é-nos então oferecida (e a Scottie) enquanto aparição de ordem fantasmagórica, deslizando pelo restaurante Ernie’s; acedemos a ela como a uma obra de arte, paradoxalmente inacessível pois não fazemos amor com uma obra de arte. Está instalada a ambiguidade, e a escolha de Kim Novak só a acentua, corporalizando magnificamente o objecto de desejo, dando corpo à fantasia. Se a sequência da perseguição nos telhados com que “Vertigo” abre imediatamente imprime a depuração e a abstracção que o marcam, elas radicalizam-se nos longos segmentos em que Scottie segue  Madeleine pelas ruas e lugares de São Francisco. A deriva é tanto dela como é dele, em busca de si. Repare-se como na última das vezes que ele a segue – mostrando visível incompreensão - ela o leva de volta a sua casa, de volta a si. 

 

 

Em “Janela Indiscreta”, a sua personagem L.B.Jeffries espiava os vizinhos pelas lentes, aqui segue os passos da mulher a uma distância segura. Mas aqui será ele a quebrar a distância e, fazendo-o, a ditar a sua perda. Ainda que se lance na salvação daquela por quem se apaixona, nesta derradeira colaboração, o norte-americano confirma-se como o actor hitchcokiano em quem reside a impotência. A sua identidade está por construir e por isso ele tanto é Scottie como é John, Ferguson ou Johnny-O. Não é com Madeleine que o conseguirá. Incapaz de mudar o destino dela, restar-lhe-á viver a alucinação dela, morrer a sua morte, como evidencia a sequência do sonho e o seu internamento. 

 

O filme permite todas as especulações interpretativas alicerçadas na psicanálise. A fotografia do fiel colaborador Richard Burks, que vai da obscuridade para uma luz filtrada e de contornos irreais, a travessia de espaços em que abundam os arcos e pórticos por onde emergem as personagens, invocam o nascimento. Scottie terá ainda que afirmar a sua masculinidade e Midge (Barbara Bel Geddes), que quebrou o seu noivado com ele - associada repetidamente à figura maternal -, sairá de cena quedando-se ao fundo do corredor escuro tantas vezes mencionado, recortando-se contra a luz que lhe é vedada pelas grades da janela. 

 

Assombrado pela memória de Madeleine, vê-la-á em todos os lugares por que passaram. O realizador encarrega-se disso ao perversamente povoar o cenário de mulheres com roupas e cabelos de corte e cor idênticos. Judy será então o objecto que metamorfoseará à medida do seu desejo, negando-lhe a existência - tantas vezes a vimos só enquanto silhueta. Nos breves instantes de reconfiguração do seu rosto, cabelo e unhas, ouviremos de novo os acordes que acompanham o histórico genérico da autoria de Saul Bass. Nesta altura já sabemos quem é Judy, ou quem não foi Madeleine. Mas é esta que emergirá da casa-de-banho, finda a metamorfose, equivalendo o apanhar de cabelo quase ao tirar da última peça de roupa. O quarto transforma-se no estábulo onde Scottie tentou curar Madeleine da sua pretendida loucura, sendo agora o espaço da vitória da alucinação sobre o real. Judy é agora Madeleine mas enquanto fantasia tem a sua morte anunciada. O colar da mulher que preexiste a todas elas – Carlotta Valdéz – reinstaura a realidade, materializa-a. O encanto quebra-se na imagem devolvida pelo espelho. E, quando se ouve Scottie dizer no final “Amei-te tanto, Madeleine!” , sabemos que Judy está irremediavelmente perdida. Scottie vence a acrofobia, mas sofre a perda, atravessando o arco no cimo da torre e afastando os braços. Venceu Gavin Elster que o envolveu nas malhas do seu jogo, manipulou a mulher e a transformou à sua medida. Fê-lo melhor que Scottie, como ele próprio o diz, referindo-se ainda ao seu poder e liberdade. Gavin havia já referido no diálogo inicial no escritório que era do que sentia falta dos velhos tempos de São Francisco. Estas palavras ecoariam ainda pela voz do dono da livraria. Do poder e da liberdade, atibutos tradicionalmente masculinos, foram vítimas Carlotta Valdéz, Judy, a verdadeira Madeleine Elster e o próprio Scottie.

 

 

 

 

Se a opção por “Vertigo” se justifica à luz do enquadramento temático do ciclo, o mesmo sucederia com outras obras do Mestre. Como exemplo refira-se “O Desconhecido do Norte-Expresso”, adaptado de uma obra de Patricia Highsmith. O encontro fortuito de dois homens num comboio lança-os num pacto de morte, confessadamente desejado por um e mais ambiguamente pelo outro. À falta deste, teremos “O Criado” de Joseph Losey. 


 

Entrada Livre