Citemor 2004


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ciclo de cinema ao ar livre

VIOLÊNCIA E PAIXÃO

Luchino Visconti


Dom 1 Ago | 22:30 | Castelo

A questão da luta de classes estava subjacente a “O Criado” de Joseph Losey, o filme anterior neste ciclo. Um dos motivos centrais na filmografia do realizador Luchino Visconti, aristocrata marxista, é a reacção das classes mais elevadas a um mundo tumultuoso, em constante mudança.

 

A primeira sequência de “Violência e Paixão” situa muito claramente o seu protagonista como reduto de um tempo de tradição, com os seus códigos de conduta e elegância patentes no gosto pela arte clássica e, ainda, nos limites éticos no que respeita à aquisição das obras. O seu palácio é a morada do seu exílio voluntário do mundo exterior, aí habitando na companhia de Erminia (Elvira Cortese). Os seus fiéis vinte e cinco anos de serviço acentuam o carácter conservador deste mundo. Sabemo-lo pela marquesa Bianca Brumonti (Silvana Mangano, actriz tutelar do cinema de Visconti e Pasolini). É a sua presença que anuncia a disrupção iminente do mundo do Pofessor, circulando ruidosamente no mausoléu sem obedecer a rituais cerimoniosos, e introduzindo a dissonante nota da modernidade, sugerindo a adopção de estantes modernas para a arrumação dos livros. A chegada sucessiva dos restantes membros do grupo da marquesa mais acentuarão a perturbação da ordem e da rotina, culminando com a entrada de Conrad (Helmut Berger, figura-chave na vida e obra do realizador). O olhar demorado do Professor sobre ele abre-nos outras possibilidades de percepção da sua personagem e, logo, do filme. Depois de contemplar o quadro, ele contempla agora a beleza encarnada num ser vivo. De imediato, irá tentar resgatar a posse do quadro que havia rejeitado, no que podemos ler como um acto de sublimação. A recuperação da obra de arte far-se-á enquanto moeda de troca para a ocupação do andar cimeiro do palácio. O acordo será conseguido, recorrendo a marquesa à sua filha Lietta (Claudia Marsani) que, pela inocência, conseguirá – agora e em outras ocasiões - sensibilizar o Professor. A intrusão está consumada. Conrad é o novo inquilino do Professor, ameaçando fisicamente o seu mundo: o tecto desaba, Conrad entra-lhe em casa, faz com que o sirvam, e serve-se despudoradamente do telefone obrigando a casa ao contacto com o exterior, empregando uma linguagem violenta e repleta de palavrões até então ali inaudita. 

 

A arte servirá de novo de moeda de troca e o professor deixa-se seduzir pelo apreço e conhecimento da Arte por aquele ser aparte. A marginalidade do estranho e o instinto protector que lhe inspira não andam longe da sombra da sua mãe, que abrigava partisans  e judeus num quarto oculto por detrás das estantes. Localizado no centro da casa, fechado a toda a volta e em tons de vermelho, o quarto ganha ressonâncias uterinas. Se, entretanto, vimos a atitude do Professor em criança para com a mãe como se ela fosse uma estranha, podemos ser tentados a ver aqui uma tentativa de resgatar a família, de adoptar Conrad como filho. Será a inocência de Lietta, mais uma vez, a permitir a enunciação desse aspecto, conferindo-lhe existência.

 

A solidão está também aqui em jogo e será o próprio professor a enunciá-lo no final. Mas o preço a pagar para que ela termine não parece aqui negociável. A ilusão trazida pela vinda do grupo – que assim a eliminaria -, acarreta a verificação de que passou ao lado do afecto, da vida. Seguir em frente é ir de encontro à morte que já ali habitava, insidiosa, nos quadros, nos livros, nas relíquias. A precaridade que marca a existência de Conrad, e a falsa consciência de uma classe que mimetiza uma sociedade já moribunda, travestindo-a de jeans, impedem o resgate para a vida de um ritmo cardíaco que se apaga no papel, como já anunciado no genérico inicial.

 

Burt Lancaster tinha sido o protagonista de “O Leopardo”, também de Visconti, dando voz à célebre frase “É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.” A sua escolha para o papel do Professor tem uma lógica de continuidade e é tanto mais justa quanto é um dos mais destacados representantes de uma tradição também confrontada com ventos de mudança: a do cinema clássico americano. Neste penúltimo filme que realizou, é difícil não ver uma projecção de Luchino Visconti no papel do professor. Mas não a tomemos à letra, até porque ao desagrado por tabaco expresso pelo protagonista, se opõe a média de cento e vinte cigarros fumados diariamente pelo realizador. 

 

Ao contrário do espaço fechado em que decorre “Violência e Paixão” – o máximo que nos é permitido do exterior são as idas à varanda -, “Dias do Paraíso” passa-se maioritariamente numa América a céu aberto, não deixando por isso de ser menos sufocante o trio amoroso a que assistiremos amanhã.



Entrada Livre