Citemor 1997



  ©

antónio campos 

histórias selvagens

filme


Sex 25 Jul | 24:00 | Praça da República

De todos os filmes que o comércio cinematográfico nunca exibiu, “Histórias Selvagens” é uma das mais gritantes injustiças. Não que se trate de uma obra - prima, mas por ser, certamente, um dos muito raros exemplos, no cinema português, que, debruçando-se sobre a realidade camponesa, a filma quase no lugar sobre que fala. Quer isto dizer que António Campos é um cineasta que se pressente próximo dos camponeses que filma e ficciona, proximidade que, nada tem de naif.

Com efeito, “Histórias Selvagens” arrisca-se a misturar documento e ficção, arrisca-se a não respeitar a cronologia do que narra, arrica-se a servir pacientemente várias histórias, num corpo que não sendo perfeito, tem humildade de ser quase amador e o arrojo de ser quase vanguardista.

Miséria, fome, tristeza, vida e morte e sonho de um campesinato da Beira Litoral passam por este filme, onde um atento “olho” etnográfico está presente, que uma sabedoria, funda e não exibicionista, constroi.

in, Dicionário do Cinema Português

Jorge Leitão de Barros


Poucos cineastas se têm conservado tão fieis à sua concepção criadora como António Campos. Em todos os seus filmes a realidade é captada de um modo directo, simples, procurando uma relação harmónica entre a natureza e as pessoas e fugindo sempre ao empolamento plástico ou dramático.

Mesmo nos seus filmes com enredo, essa relação específica paisagem/personagem não é perturbada em favor da história, pelo que poderíamos falar talvez com mais propriedade em “documentário dramático”, designação que cobre perfeitamente o estilo e as intenções do autor.

Histórias Selvagens” é um filme com a marca genuína de António Campos, e talvez o seu trabalho mais elaborado, pois além de procurar manter a identidade criadora nos termos atrás referidos, lhe acrescenta elementos de crítica social que, aceitemos ou não a perspectiva ideológicamente subjacente, dão novo sentido ao enredo e à própria realidade apresentada.

Tal intenção, que em muitos cineastas altera e manipula os dados do real, é apresentada de modo tão simples e ao mesmo tempo tão dramático que os valores de forma e substância não são prejudicados: a narrativa continuaria igualmente verdadeira se outra fosse a perspectiva do autor.

E é por isso que “Histórias Selvagens” conserva toda a sua força e nos transmite tal força de processos eminentemente cinematográficos: todo o drama do pobre casal montemorense se compreende quase sem diálogo, pela simples evidência das suas condições de vida e da realidade que os rodeia.

Narrado numa constante alternativa do passado e presente, que chega a misturar-se na mesma imagem, como que a dizer-nos que nada mudou, que o mundo não se transformou, “Histórias Selvagens” desenrola-se numa zona muito conhecida do autor, homem da Beira Litoral e da sua gente: a região de Montemor-o-Velho, aqui e sempre ameaçada pela subida das águas do Mondego. A cheia, de facto, é o motor dramático de toda a história, o fundo visual que advinhamos, ora nas águas que tudo cobrem, ora na lama permanente do chão, ora nos vestígios de inundações anteriores.

Histórias Selvagens”, deste modo, surge como um drama reflectido nas águas, espelho de humanidade. E a câmara de Acácio de Almeida, que nos dá de vez em quando belas imagens da região e dos campos inundados, segue sempre a intenção documental, directa, funcional, que António Campos imprime à sua história, lenta como o descer das águas, e que não busca no espectacular da cheia um caligrafismo susceptível de lhe prejudicar o rigor.

Como nota final, direi ainda que me surpreendeu a construção dupla do filme, reveladora da maturidadede Campos. De facto, toda a história se desenvolve num duplo plano: dramaticamente pela alternativa de passado e presente dos protagonistas; visualmente, pela continuidade das imagens que mostram sempre o documento local da situação antes de as personagens a interpretarem.

Este jogo de alternativas dá a “Histórias Selvagens” um clima muito peculiar e mostra como se pode fazer um cinema da mais evidente modernidade estética sem deixar de nos revelar um Portugal autêntico e nosso, um país desconhecido que a câmara de António Campos continua a documentar.

Luís de Pina


Argumento, realização e montagem António Campos; 

Diálogos adicionais, efeitos sonoros e assistente de realização Quiné; 

Director de fotografia Acácio de Almeida; 

Música J. S. Bach; 

Acordeão Manuel Figueiredo; 

Leitura do poema (de José Gomes Ferreira) Fernanda Lapa e Fernando Alves Comentário histórico Maria de Deus

Comentário das cheias Cândido Mota

Interpretação Glicínia Quartin, Carlos Bartolomeu, Cremilda Gil, João Lagarto, Márcia Breia, Júlio Cardoso, Lurdes Jorge, Fernando Manuel, Laura Quintela, Júlio Emílio e gente de Montemor-o-Velho 

Produção Instituto Português do Cinema 1977

Produção executiva José João Mota


Filmado entre Fevereiro e Maio de 1978, em Montemor-o-Velho e outros locais da Beira Litoral

Nunca estreado comercialmente

16 mm, cor, 100 minutos